Determinação do Débito Cardíaco por Termodiluição: Comparação do Método por Bólus com o Método Contínuo

 

Antero Fernandes, Pedro Póvoa, Pedro Moreira, Rui Mealha, Eduardo Almeida, Henrique Sabino

Unidade de Cuidados Intensivos

Hospital Garcia de Orta

Pragal-2800 ALMADA

Portugal

Tel: 21 2940294

Fax: 21 2957004

email: antero.f@mail.telepac.pt

 

Resumo

Objectivo - Comparar os resultados das medições do débito cardíaco (DC) por termodiluição obtidas por bólus de soro (DCB) e de forma contínua (DCC).

Material e Métodos - Estudo prospectivo de 12 doentes internados no período de Janeiro a Agosto de 1998, que necessitaram de cateterismo da artéria pulmonar para esclarecimento da situação hemodinâmica. Todos eles tiveram monitorização contínua do débito cardíaco (DCC) e da saturação venosa mista de oxigénio (SvO2). Para medição do DCC utilizaram-se catéteres de Swan-Ganz-CCO/SvO2 Catheter: 744F75, acoplado a um monitor VigilanceÒ (Baxter Healthcare Corporation, Irvine-USA). Determinou-se o DCB 3 vezes em cada doente nas primeiras 24 h de cateterismo. Em cada determinação de DCB realizaram-se 3 bólus de 10 mL de soro fisiológico frio. Este valor foi comparado com a médias dos valores de DCC antes e após a medição do DCB. A comparação das amostras foi feita com o teste t de Student emparelhado. Utilizou-se a regressão linear e o método de Bland-Altman  para estudar a concordância entre as duas formas de avaliação. Consideraram-se significativas diferenças com p<0.05.

Resultados - Os 12 doentes (7-Choque Séptico, 3-ARDS e 2-Insuficiência Cardíaca Congestiva), apresentavam uma idade média de 59 ± 22 anos, sendo 8 homens. O valor médio do DCB foi de 7.45 ± 1.78 L/m e do DCC foi de 7.45 ±1.76 L/m (p=NS). A regressão linear mostrou que o DCC = 0.99 . DCB + 0.09 (L/m) (r=0.998, p<0.001). Pelo método de Bland e Altman encontrou-se uma concordância excelente entre os valores de DCC e DCB, com uma correspondência média entre os dois métodos de 0 ± 0,1 L/m.

Conclusões – Existe uma excelente concordância nos valores de DC obtidos por DCB ou por DCC.

 

Palavras-Chave – monitotização hemodinâmica, débito cardíaco contínuo.

 

Abstract

Objectives - To compare the results of cardiac output (CO) measurements obtained by two different methods: thermodilution (TDL) by bolus (COB) and continuous measurement (CCO).

Material and Methods - A prospective study was undertaken which involved 12 patients. The admission period was from January to August 1998. All twelve patients required pulmonary artery catheterization during their intensive care unit stay. All had continuous monitoring of the cardiac output (CCO) and mixed venous oxygen saturation (SVO2). CCO was measured using the continuous cardiac output Swan-Ganz-CCO/SVO2 Catheter: 744F75, connected to a VigilanceÒ Monitor (Baxter Healthcare Corporation, Irvine-USA). COB by TDL was measured 3 times during the first 24h of catheterization. Each determination was performed with 3 boluses of 10 mL with cold normal saline. This value was compared with the average value of DCC measured pre and post TDL bolus. The samples were compared using the Paired-Samples T Test. Linear regression and Bland-Altman method were used to evaluate the agreement between both methods of measurement. The level of statistical significance was set at 0.05.

Results - The 12 patients were admitted with the following diagnoses: 7 with septic shock, 3 with ARDS and 2 with Congestive Cardiac Failure. The average age was 59 ± 22 years. The medium COB was 7.45 ± 1.78 L/m and the CCO was 7.45 ± 1.76 L/m (p=NS). Linear regression analysis revealed: CCO = 0.99 . COB + 0.09 (L/m) (r=0.998, p<0.001). An excelent agreement between the values of CO obtained with both methods was observed, with a bias of 0 ± 0,1 L/m.

Conclusions – Measurements of CCO have an excellent agreement with those obtained by COB.

 

Key-Words: heamodynamic monitoring, continuous cardiac output.

 

Introdução

A abordagem terapêutica do doente crítico baseia-se no conhecimento de múltiplas variáveis fisiológicas, entre as quais se destacam a pressão arterial sistémica e pulmonar, a pressão venosa central, a pressão de encravamento capilar pulmonar, a saturação arterial e venosa mista de oxigénio, a temperatura, o electrocardiograma e o débito cardíaco (DC).

A medida contínua de qualquer das referidas variáveis é preferível às medições intermitentes, já que proporcionam mais informação, revelando eventos que de outra maneira passariam despercebidos, para além de diminuir o tempo real das intervenções associadas à monitorização intermitente [1,2]. Recentemente desenvolveu-se um sistema de medição do débito cardíaco contínuo (DCC) baseado no princípio de termodiluição (TDL). O sistema compõe-se de um catéter de artéria pulmonar modificado, com um filamento térmico que proporciona pequenas quantidades de energia em forma de calor a corrente circulatória. Encontra-se acoplado a um monitor/computador que analisa os dados registados pelo termómetro do catéter de Swan-Ganz, realizando cálculos matemáticos correspendentes para a obtenção do valor do débito cardíaco (DC). O cálculo da curva de TDL é feita mediante a equação de diluição de um indicador de Stewart-Hamilton modificada [3]. Os estudos publicados com esta nova técnica, apesar de escassos, mostram resultados promissores.

O objectivo do presente estudo foi comparar os valores de DC obtidos pelo método DCC com os valores obtidos usando o método clássico, isto é, a medição do débito cardíaco com bólus (DCB), no doente crítico.

 

MateriaL e Métodos

Realizámos um estudo prospectivo que incluiu 12 doentes críticos internados na Unidade de Cuidados Intensivos, no período de Janeiro a Agosto de 1998, que necessitaram de cateterização da artéria pulmonar por catéter de Swan-Ganz.

Para medição do DCC utilizaram-se catéteres para determinação de DCC por TDL, CCO/SvO2 Catheter: 744F75, (Baxter Health Corporation, Irvine-USA). Estes catéteres possuem um filamento térmico, que fornece pequenas quantidades de energia sob a forma de calor à corrente circulatória segundo uma sequência definida e repetitiva. Este filamento térmico deve ficar posicionado no ventrículo direito e na respectiva câmara de saída. O catéter fica conectado a um monitor VigilanceÒ (Baxter Healthcare Corporation, Irvine–USA) que regista a cada 60 segundos uma medida de DCC, resultante das variações de temperatura registadas por um termómetro situado na sua porção distal. A posição correcta dos catéteres foi confirmada mediante comprovação das curvas de pressão e a localização radiológica.

Por três vezes nas primeiras 24 h de cateterismo foi efectuada a medição do DCB, após comprovação da estabilidade do DCC no monitor durante 5 minutos, utilizando-se bólus de 10 mL de soro fisiológico frio, injectados em menos de quatro segundos, no final da fase expiratória. O valor do DC foi a média destes valores.

Considerámos para análise os primeiros valores de DCB e o valor médio de DCC pré e pós medição do DCB. Excluiram-se os pares de dados obtidos quando o DCC não se apresentava estável ou quando a diferença do DCC pré e post medida da injecção por bólus foi superior a 10%, seguindo a metodologia descrita por Lefrant et al. [3].

A comparação das amostras foi feita com o teste t de Student emparelhado e utilizámos a regressão linear e o método de Bland-Altman [4] para estudar a concordância entre as duas formas de avaliação. Consideraram-se significativas diferenças com p<0.05.

 

Resultados

Os 12 doentes estudados apresentavam os seguintes diagnósticos: 7 choque séptico, 3 ARDS e 2 Insuficiência cardíaca congestiva. A idade média foi de 59 ± 22 anos e 8 eram homens. O APACHE II e o TISS 28 médios nas primeiras 24 h foi de 25 ± 8.1 e de 51 ± 7.5, respectivamente. Obtivemos valores de DC entre 4.1 e 10.3 L/m pelo método DCB. O DCB médio foi de 7.45 ± 1.78 L/m e o DCC médio foi de 7.45 ± 1.76 L/m (p=NS).

A regressão linear permitiu-nos obter um r=0.998, p<0.001. Na figura 1 observa-se a análise de regressão linear entre DCB e DCC, tendo em conta a comparação dos primeiros valores.

Figura 1 - Análise de regressão linear entre os valores de débito cardíaco por bólus (DCB) e os de débito cardíaco contínuo (DCC) tendo em conta as primeiras medições efectuadas nos 12 doentes estudados (r=0.998, p<0.001).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Foi também efectuada a comparação dos referidos resultados segundo o método de Bland-Altman, tendo-se verificado uma excelente concordância entre os valores de DCB e de DCC, sendo a correspondência média entre os dois métodos de 0 ± 0,1 L/m, conforme se mostra na figura 2.

Figura 2 – Concordância entre a determinação do débito cardíaco por bólus (DCB) e contínuo (DCC) de acordo com a análise de Bland-Altman; a concordância média entre os dois métodos foi de 0 ± 0.1 L/m.


 


Nas figuras 3 e 4 comparam-se a totalidade das 3 medições efectuadas por doente, 36 no total.

Figura 3 - Análise de regressão linear entre os valores de débito cardíaco por bólus (DCB) e os de débito cardíaco contínuo (DCC) tendo em conta a totalidade das 36 medições efectuadas nos 12 doentes estudados (r=0.998, p<0.001).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


A regressão linear mostrou que o DCC = 1.01 . DCB - 0,09 (r=0.998, p<0.001) (Figura 3). A análise de acordo com o método de Bland-Altman mostrou mais uma vez excelente concordância entre ambos os métodos. Os valores de DCC foram muito ligeiramente superiores aos avaliados por DCB (0.039±0.105 L/m) (Figura 4).

Figura 4 – Concordância entre a determinação do débito cardíaco por bólus (DCB) e contínuo (DCC) de acordo com a análise de Bland-Altman tendo em conta a totalidade das 36 medições

efectuadas nos 12 doentes estudados; a concordância média entre os dois métodos foi de 0.039 ± 0.105 L/m.

 


Discussão e conclusão

O perfil hemodinâmico e oximétrico do doente baseia-se no cálculo do DC. Se este estiver errado todos os parâmetros dele dependentes estarão igualmente errados devido ao acoplamento matemático dos erros.

O DC e os parâmetros hemodinâmicos e oximétricos derivados (transporte, consumo e extração de oxigénio) são determinantes fundamentais para o conhecimento da situação hemodinâmica do doente crítico assim como para o seu tratamento adequado. Se bem que a técnica de medição do DC por termodiluição apresente limitações no cálculo do mesmo, continua a ser o método standard na clínica pela sua sensibilidade, rapidez e reproducibilidade, e porque a sua medição não está dependente da área vascular [5,6]. A exactidão da medição depende da técnica de injecção, temperatura do fluído injectado, fase do ciclo respiratório em que é realizado, da constante de computação, etc.. Outras desvantagens do sistema de medição de DC em bólus são as manipulações a que se submete o sistema, a sobrecarga desnecessária de fluídos em situação de insuficiência cardíaca ou renal, a sua obtenção de forma intermitente e o tempo gasto na sua realização por pessoal médico e de enfermagem.

Todas estas limitações e desvantagens na medição de um parâmetro tão valioso, assim como a importância da possibilidade de monitorização contínua do mesmo, provocou um enorme esforço na consecussão de um método de medição contínua do DC. Propuseram-se diferentes técnicas (medição de contorno do pulso arterial, eco-doppler transesofágico ou transtraqueal [7-12], bioimpedância eléctrica intracardíaca [12] e método de Fick contínuo [13,14]). Porém, até agora não se desenvolveu um método de utilização rotineira na prática clínica, com resultados satisfatórios quanto a sensibilidade, aplicabilidade e segurança.

O DCC por TDL, descrito pela primeira vez em 1990 por Yelderman et al [15], proporciona-nos por meio de um catéter da artéria pulmonar modificado e um sistema de termodiluição novo (diferente do bólus) uma monitorização contínua do DC por cálculo de fluxo volumétrico, independentemente da geometria vascular. Este sistema foi avaliado em numerosos estudos, tanto experimentais com clínicos [15-19], demonstrando a sua fiabilidade (quando comparado com as técnicas de medição já estabelecidas ) e segurança.

Yelderman et al publicaram em 1992 um estudo [15] comparando o método clássico de termodiluição em bólus e o DCC por termodiluição, encontrando boa correlação e concordância entre os métodos. Hogue et al [17] também demonstraram boa concordância de ambas as técnicas entre si, para além da correlação com a electromagnetometria, considerada o sistema padrão para medição de fluxo sanguíneo em laboratório. Boldt et al [18] analisando doentes críticos (politraumatizados e sépticos) encontraram boa concordância entre o método contínuo e de injecção por bólus, inclusivé em situações de aumento da temperatura corporal ou DC elevados, se bem que com a manutenção prolongada dos catéteres havia alguma perda de fiabilidade. Ryan et al [19] comparando as técnicas de termodiluição contínua e em bólus, confirmaram a fiabilidade e precisão do método contínuo, especialmente com índice cardíaco (IC) menor que 4.5 L/min/m2, mas encontraram uma discrepância crescente para valores mais elevados de IC. Estudos adicionais com destaque particular para os de Haller et al [20], demonstraram uma boa correlação e concordância entre os dois métodos de medição.

Apesar de as infusões rápidas de solução frias poderem alterar a fiabilidade do sistema de medição contínuo, as variações da temperatura basal da artéria pulmonar são bem toleradas, apresentando o DCC uma maior resistência ao ruído térmico causado pelas infusões de fluídos, o que melhora a sua utilidade clínica.

Os nossos resultados foram sobreponíveis aos referidos na literatura [21,22], mesmo não se tratando de uma amostra grande. De forma similar encontrámos uma boa correlação entre ambos os métodos, com um r=0,998. A análise de Bland-Altman é o método estatístico de referência para a comparação de dois métodos de medida clínica, mostrando o grau de concordância entre o novo método (submetido a avaliação) e o considerado préviamente como standard [4]. A concordância obtida quantifica a presença ou ausência de erro sistemático entre os dois sistemas de monitorização. O seu desvio padrão constitui uma estimativa de erro e representa a precisão ou variabilidade entre ambas as técnicas. O nosso estudo mostrou uma excelente concordância entre ambos os métodos (0 ± 0,1 L/m). Constatou-se ainda boa fiabilidade dos valores de DCC em débitos baixos, o que na práctica assume particular destaque, pois constituem situações clínicas de mais difícil controlo, nas quais a obtenção de dados exactos e em que as possíveis pequenas oscilações merecem particular importância. Para valores de DC entre 4.1 e 10.3 L/m comprovou-se a manutenção da linearidade entre os dois métodos, ao contrário de outros trabalhos.

O facto de estes catéteres se acompanharem de medição oximétrica da SvO2, que traduz uma medição contínua e em tempo real do estado global da oxigenação do doente, facilita ainda mais a monitorização e interpretação da evolução do doente.

As desvantagens do sistema de TDL contínua são as mesmas que as de qualquer outro método de termodiluição [23], isto é, as medidas podem não ser fiáveis ou apresentar erros em caso de regurgitação tricúspide, “shunts“ intracardíacos, etc.. Pode igualmente observar-se complicações na inserção do catetér da artéria pulmonar (pneumotórax, arritmias, etc.) ou durante a manutenção “in situ” do mesmo (trombose venosa, endocardite, etc). Nos doentes com miocardiopatia dilatada e cavidades direitas aumentadas de tamanho o catéter pode ficar muito introduzido no ventrículo, o que pode provocar uma alteração na mistura térmica do sangue e um DC errado. De igual forma, temperaturas basais superiores a 40º C condicionam impossibilidade na leitura dos valores de DCC no monitor Vigilance®(Baxter Healthcare Corporation, Irvine-USA). O uso de um sistema computorizado evita os erros e a variabilidade dependente do operador, o que aumenta a sua exactidão. Isto, aliado a maior informação, devida a obtenção contínua de dados, permite detectar situações de baixo débito mais precocemente que outros sistemas de monitorização intermitentes. Para além disso, a utilização do DCC dispensa as medições intermitentes por bólus, o que em termos de poupança de tempo, consumo de sistemas e de soros, e no volume de líquidos administrado apresenta nítidas vantagens comparativamente ao método por bólus. Nestas últimas considerações é preciso ainda considerar o preço dos catéteres. A preços de 1998, um catéter de Swan-Ganz “clássico” custava cerca de 15.000$00 escudos, enquanto que o catéter utilizado neste estudo (CCO/SvO2 Catheter: 744F75, Baxter Health Corporation, Irvine-USA) custava cerca de 45.000$00 escudos.

No nosso estudo não encontrámos diferenças significativas nos valores do DC obtido por bólus ou por método contínuo, constituindo este último, um sistema adequado na monitorização cardiovascular de pacientes críticos, útil e passível de aplicação rotineira na prática clínica.

 

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