DOPAMINA E PREVENÇÃO DA INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA
Sequeira Andrade
Hospital Garcia de Orta, Almada
Portugal
A Insuficiência Renal Aguda (IRA) continua a ser um enorme motivo de frustração para os médicos em geral e especialmente para os nefrologistas, face à sua manifesta incapacidade de alterar, de modo significativo, a grande mortalidade que está associada a este quadro clínico. Na realidade, no decorrer dos últimos 20 anos, o prognóstico dos doentes com IRA tem‑se mantido praticamente inalterado. A mortalidade da IRA oscila entre 30 e 70%, dependendo dos vários contextos em que se apresenta. Recorda‑se, no entanto, que os números relativos à mortalidade também não são fáceis de estabelecer com rigor pois não podemos esquecer que alguns doentes morrem de IRA e outros com IRA. São, também, muitas as dificuldades de análise e comparação desta situação clínica nos vários contextos e cada vez maior a sua complexidade médica. Passemos em revista algumas destas dificuldades:
As grandes dificuldades que a IRA tem sempre colocado aos médicos, tem proporcionado uma procura constante de medidas terapêuticas para enfrentar a situação. Várias terapêuticas, sobretudo diuréticos e agentes vasoactivos, têm sido ensaiados nas várias fases da IRA. Além das medidas convencionais de abordagem dos factores etiológicos ou das complicações que surgem no respectivo processo evolutivo da doença, a grande maioria da investigação sobre a prevenção ou terapêutica da IRA tem incidido na capacidade de aumentar a diurese e/ou impedir a vasoconstrição que, em teoria, estará sempre presente no decurso do processo agudo de perda da função renal. Recordo, de seguida, alguns dos fármacos que têm vindo a ser estudados neste contexto. Sendo a endotelina um potente vasoconstritor, o uso de antagonistas dos seus receptores poderia, teoricamente, eliminar a vasoconstrição que constitui um dos elementos considerados essenciais na patogénese da IRA. Sabe-se que a produção de endotelina é estimulada pelos meios de contraste radiológico. Os antagonistas dos receptores da endotelina mostraram melhorar o prognóstico da IRA em modelos animais mas os ensaios em humanos, na IRA por contraste radiológico, tiveram resultados desanimadores, mostrando, mesmo, agravamento da mortalidade. A Acetilcisteína é um antioxidante que também tem sido usado com resultados ainda duvidosos na IRA por contraste radiológico. Também na mesma linha de investigação, face aos seus efeitos citoprotectores, vasodilatadores e inibidores da endotelina, foi usada a PGE 1 também revelando resultados contraditórios. O IGF I (Insulin-like Growth Factor I) foi essencialmente usado em doentes cirúrgicos de risco; os resultados práticos têm sido irrelevantes. O Anaritide (Atrial Natriuretic Factor – ANF) foi estudado em situações de NTA. Um estudo mostrou melhor sobrevivência nos doentes com oligúria mas este facto não pôde ser confirmado em estudos subsequentes. A Tiroxina, tendo demonstrado ser eficaz na promoção da recuperação da IRA em modelos animais, foi usada em ensaios humanos não controlados mas, apesar dos poucos efeitos colaterais, não tem dado resultados conclusivos. Existem ainda trabalhos referindo, entre outros, o uso de Lazaroids - Freedox, Alfa-MSH e Agonista dos receptores da Dopamina - Fenoldopam. Do interesse deste último falaremos mais adiante.
Mas sendo este tema sobre a Dopamina, comecemos por relembrar, de forma resumida, como se pensa que actua. É uma catecolamina sintetizada no hipotálamo, nos núcleos arcuato e caudado e em várias outras áreas do sistema nervoso central e periférico, tendo sido identificados dois receptores específicos presentes nos vasos e, também, no tecido renal: Receptores Dopamina-1 (DA1) localizados nas células dos músculos lisos vasculares; a sua activação causa vasodilatação por um mecanismo mediado pelo cAMP. Receptores Dopamina-2 (DA2), localizados predominantemente nos terminais pré-sinápticos da porção post-ganglionar dos nervos simpáticos, a sua estimulação leva a uma menor libertação de norepinefrina dos terminais pré‑sinápticos e consequente vasodilatação passiva. Por outro lado, a Dopamina também pode activar os α‑adrenoreceptores periféricos e os β1‑adrenoreceptores cardíacos. Os seus efeitos hemodinâmicos são uma função da afinidade relativa dos receptores, de uma forma dose‑dependente. Nos humanos saudáveis e nos modelos animais com IRA, a Dopamina provoca, em baixas doses (0.5 a 1 μg/Kg/min), vasodilatação através da activação preferencial dos receptores DA1 e DA2; em doses intermédias, 2 a 3 μg/Kg/min, aumenta o débito cardíaco através da estimulação dos receptores β1; em doses superiores sucede vasoconstrição consequente a activação dos receptores α1 e α2. Ainda na sequência das alterações que pode induzir na hemodinâmica renal, a Dopamina pode provocar aumento da diurese e da natriurese quer, através da estimulação dos receptores DA1 e DA2 com consequente inibição da bomba de Na+‑K+‑ATPase e do consumo renal de oxigénio, como por efeito tubular directo e supressão da actividade da aldosterona. Deve no entanto salientar‑se que os efeitos referidos podem alterar-se dependendo do estado de hidratação do doente.
O efeito global desejado com a Dopamina em doses baixas ou intermédias é o de, preservando a pressão arterial sistémica, manter ou aumentar o fluxo plasmático renal e a taxa de filtração glomerular.
Existem vários agonistas dos receptores dopaminérgicos DA2, tais como bromocriptina, pergolido, lisuride, quinpirole e carmoxirole, os quais inibem a libertação de norepinefrina com consequente baixa da pressão arterial. Do ponto de vista terapêutico alguns destes agonistas têm encontrado aplicação clínica apenas no tratamento da Doença de Parkinson. A bromocriptina actua sobre os receptores DA2 do sistema tuberoinfundibular, inibindo a libertação de prolactina e provocando um decréscimo da hiperprolactinémia e dimensões tumorais. Os antagonistas dos receptores DA1 são o SCH23390 e a clozapina que é usada para tratamento da esquizofrenia.
Entre os agonistas dos receptores DA1 podem referir-se fenoldopam, piribedil, ibopamina, SKF 3893 e apomorfina. A activação destes receptores baixa a resistência vascular periférica, induzindo abaixamento da pressão arterial e aumento da frequência cardíaca, do tónus simpático e da actividade do sistema RAA. Entre os antagonistas dos receptores DA2 salientam-se a metoclopramida, domperidone, silpiride e haloperidol. Do ponto de vista terapêutico a metoclopramida e o domperidone são usados nas perturbações da motillidade gástrica e o haloperidol em alterações psicóticas.
Em 1980 Henderson publicou um trabalho em que foram estudados 11 doentes normotensos com IRA oligúrica e sem resposta à Furosemida, nos quais foi usada Dopamina (2 μg/Kg/min EV, durante 2 horas) com evidente aumento da diurese de uma média de 10 para 112 ml/hora mas sem repercussão na média da creatinina sérica. Vários trabalhos subsequentes publicados, abordando a IRA em vários contextos, continuam a referir alguma tendência para melhoria da diurese (sobretudo nos grupos em que à Dopamina foi associado um diurético) mas sem alteração significativa da função renal ou da mortalidade. O uso da Dopamina é dificultado pela existência dos diferentes tipos de receptores referidos acima e pela diferente estimulação a que estão sujeitos conforme as doses usadas ou o estado da volémia. As doses elevadas têm efeitos teoricamente indesejáveis e as doses mais baixas, apesar da sua vantagem teórica, também não têm revelado resultados práticos confirmados.
Portanto, apesar das vantagens teóricas do uso da Dopamina na tentativa de contrariar a fase de vasoconstrição da IRA, da análise dos muitos estudos já publicados pode concluir-se da inexistência de utilidade na reversão do processo ou na melhoria do prognóstico. No entanto, os defensores do uso deste fármaco continuam a referir que nenhum dos estudos publicados foi ainda suficientemente amplo e bem estruturado para que às conclusões se possam atribuir significado estatístico.
Querendo manter o raciocínio da utilidade da reversão da vasoconstrição como benéfico nas situações de IRA, parece de grande interesse o uso de fármaco com acção agonista exclusiva dos receptores DA1 da dopamina, como é o caso do Fenoldopam. Esta estimulação promoveria apenas e só, teoricamente, diminuição da resistência vascular renal com consequente aumento do FPR e TFG e aumento da diurese e da natriurese, sem que se verifiquem os eventuais efeitos nocivos que a Dopamina pode desencadear e que poderão impedir a reversão do processo da insuficiência renal. Apesar de já existirem alguns estudos que favorecem esta hipótese, especialmente na experimentação animal e em humanos normais, hipertensos, ou, ainda, na IRA por agente radiológico, ainda são necessários ensaios clínicos prospectivos randomizados para que se possa confirmar a utilidade deste agente terapêutico.