Paulo Maia
Este princípio consagra
claramente o dever de evitar prejudicar o doente.
A Ética Médica era encarada
em função dos deveres dos médicos em relação aos doentes e podemos afirmar que
desde o tempo de Hipócrates e até cerca
de 1960 este princípio e o princípio de beneficência fundamentavam a Ética Médica.
São aplicações deste princípio:
-
os cuidados paliativos e a prevenção ou minimização dos danos físicos
ou morais no doente agónico
-
as atitudes que preservem a unidade da família (dizer a verdade, evitar
ambiguidades, promover a confiança). A verdade, no entanto, deve ser honesta
sem ser cruel, evitando sempre a criação ou fomentação de estigmas
sociais.
São aplicações deste princípio:
-
melhorar a qualidade de vida ou o processo de morte (retirando assim
aos profissionais de saúde a ansiedade ou o complexo de culpa)
-
a procura do bem comum ou a melhoria da saúde pública (compromisso dos
profissionais de saúde e das instituições).
São aplicações deste princípio:
-
o direito à escolha, à aceitação e à recusa de tratamentos
-
o direito à morte com dignidade
-
o direito ao respeito pela convicção religiosa, em todos os momentos
-
o direito de escolher o representante
-
o direito a saber (ou a querer não saber)
-
o direito a alterar a opinião e a decisão
-
o direito à privacidade e à confidencialidade
-
a responsabilização do doente
Este princípio surge como consequência do anterior e realça o mérito de
tratar todas as pessoas de forma equitativa e justa, salientando o bem geral
mesmo quando se analisa um acto ou procedimento particular (a utilização de
técnicas e tratamentos sem indicação médica deve ser encarada como desperdício
de recursos e portanto evitada).
Neste contexto merece uma nota especial a futilidade diagnóstica ou
terapêutica, entendida como o conjunto de procedimentos diagnósticos ou
terapêuticos com baixa probabilidade de fazer o doente regressar a um estado
físico, mental ou social aceitável. Introduzem-se assim duas facetas do mesmo
conceito: uma quantitativa (probabilidade de sobreviver) e outra qualitativa
(sobreviver com qualidade de vida aceitável no modelo do doente e da sua
família). Salienta-se que duma forma geral os doentes toleram uma perda de
qualidade de vida superior àquela que os profissionais de saúde
aceitariam.
A aplicação destes
princípios gera frequentemente dilemas quer nos profissionais, quer entre os profissionais, quer ainda entre
estes e os doentes ou os seus familiares. Os valores que resultam da
interpretação destes princípios devem
fortalecer o trabalho em equipa e a partilha das decisões. Algumas das
dificuldades podem ser ultrapassadas melhorando a compreensão e a tolerância,
aprendendo a saber ouvir e a evitar
quer as expressões ambíguas quer a tendência para o individualismo.
No entanto, as maiores dificuldades podem ser
consideradas quer a escolha do representante do doente (ou do melhor
representante do doente), dados o contexto legal e institucional, quer a
definição dos limites da autonomia.
A procura de cuidados
intensivos é potencialmente superior à oferta: assim pode justificar-se a
necessidade de distribuir os limitados serviços e bens aos doentes que deles
mais podem beneficiar.
Define-se:
- alocação como o termo geral que compreende a triagem e a racionalização relativamente ao
processo de distribuição de recursos; divide-se artificialmente em microalocação,
quando limitada ao âmbito de um doente ou uma cama duma UCI e macroalocação,
ao nível de decisões de política de saúde,
- triagem (cujas raízes estão
na medicina militar), termo que se refere ao estabelecimento de prioridades e distribuição por classes de
prioridade, baseado no grau de necessidade de cuidados (pretendia que os
soldados mais graves recebessem tratamento antes dos menos graves,
independentemente da patente militar); evoluiu no sentido utilitário, isto é,
maior bem para o maior número.
As difíceis decisões que os
profissionais necessitam tomar na aceitação ou recusa de admissão do doente à
UCI são frequentemente determinadas anteriormente quando politicamente é decidido
atribuir a uma região ou hospital um número de camas de cuidados intensivos
inferior às suas necessidades.
Usualmente, quando as camas
são escassas, a gravidade média dos doentes admitidos na UCI aumenta,
aumentando a mortalidade: tendencialmente são admitidos os doentes que
beneficiam em menor grau com o tratamento intensivo. É reconhecido que até 20% dos doentes internados nos
hospitais beneficiariam com o tratamento numa UCI, e também que os doentes que
são admitidos após uma recusa prévia têm uma mortalidade maior do que aqueles
que são admitidos na primeira proposta, para o mesmo grau de gravidade (APACHE
II entre 11 e 20).
Os mesmos princípios éticos
são aplicados relativamente à decisão de alta da UCI; merecem consideração
neste caso o diagnóstico na admissão, a gravidade e o prognóstico da doença e
os objectivos terapêuticos. A necessidade de admissão de um doente (princípio
da beneficência) não deve ser motivo
para antecipar a alta de outro doente (princípio de “primeiro não fazer mal”).
A incerteza quanto ao prognóstico do doente limita a capacidade de decisão, mas
não deve servir para negar ou atrasar o tratamento a doentes que possam
beneficiar mais.
Portanto, as difíceis
decisões de triagem, de admissão e de alta devem ser tomadas em equipa e seguir
recomendações aprovadas pelos médicos. Os cuidados intensivos devem ser
geralmente reservados para os doentes com razoável potencial de recuperação
(devem portanto excluir-se os doentes demasiado graves e os pouco graves – em
qualquer dos grupos é provável que o resultado seja o mesmo com ou sem o
internamento na UCI).
As questões éticas
relacionadas com a proximidade da morte merecem uma análise especial. Convém
portanto definir claramente os conceitos.
Suspensão de tratamento (withhold
treatment - WH) – decisão de não iniciar ou de não aumentar uma terapêutica
potencialmente salvadora da vida (por exemplo aminas vasopressoras; inclui ressuscitação cardiopulmonar - WHCPR).
Retirada de
tratamento (withdrawing treatment - WD) – decisão de retirar activamente
uma terapêutica salvadora da vida. Inclui por exemplo descontinuação de
ventilação mecânica ou de terapêutica vasopressora. Aplica-se a tratamentos que
não estão a ser eficazes ou que não têm o potencial de fazer reverter a
evolução da doença.
Encurtamento activo
do processo de morte – eutanásia ou suicídio assistido, seja pela
administração de uma dose letal de anestésico, de narcótico ou de cloreto de
potássio.
Ressuscitação
cardiopulmonar – inclui ventilação artificial
e massagem cardíaca. Pode anteceder a morte por ser ineficaz.
Morte cerebral – cessação documentada (de acordo com a lei) da
função cerebral e ausência de resposta à estimulação de todos os nervos
cranianos.
A suspensão do início
de terapêutica/retirada de terapêutica
já iniciada (questões colocadas frequentemente como tendo o mesmo valor
ético e suportadas por diversas decisões legais – fundamentadas na
impossibilidade de atingir os objectivos principais a que se destina a
terapêutica) podem ser ponderadas nas situações de doença terminal (crónica,
neurológica), falência múltipla de
órgãos, qualidade de vida inaceitável
para o doente, etc. Estas decisões são sempre difíceis e merecem ponderação
caso a caso.
Inquéritos realizados a
médicos das UCI’s indicam que usam estes métodos regularmente e que recomendam a sua utilização com base no
prognóstico. Importa salientar que até 70% das mortes nas UCI’s podem ocorrer
após alguma forma de WH/WD e que normalmente o doente ou a família são
consultados, uma vez que estas decisões são tomadas para evitar o prolongamento
do sofrimento do doente, num contexto de terapêutica sem esperança. Sempre que
se procede a limitação terapêutica é obrigatório manter os cuidados de higiene
e conforto, assim como garantir uma morte digna. (As terapêuticas podem ser
retiradas ou não iniciadas em conjunto ou individualmente, sendo a ordem
diferente de caso para caso e de UCI para UCI. As consequências para o doente
são diversas e podem incluir – para o exemplo
da nutrição artificial - sede, sensação de boca seca e inflamação oral,
desassossego, náuseas, fome: é obrigatório atenuar o desconforto do doente e
tomar atitudes tendentes a melhorar a qualidade de vida dos últimos momentos.
Refira-se que a nutrição artificial é, nestes doentes, uma das últimas
terapêuticas a retirar nos diversos países e culturas).
Os
doentes em morte cerebral mantêm frequentemente cuidados que incluem a
administração de fármacos e fluidos com o objectivo de manutenção do dador até
à colheita de órgãos, sendo portanto a excepção ao princípio da beneficência: a
interrupção da terapêutica nestas condições não coloca problemas éticos.
ASPECTOS LEGAIS
Os médicos são influenciados
nas suas atitudes pela forma como entendem a aplicação da lei. Se em relação à
constatação da “morte cerebral” e ao “encurtamento activo do processo de morte”
a legislação é normalmente clara na maioria dos países (permitindo a primeira e
proibindo a segunda – a Holanda é uma excepção) a aplicação pode num mesmo
país, relativamente a WH/WD conduzir a decisões diferentes. Como exemplo
apresentam-se algumas decisões de tribunais nos EUA:
·
“o conceito da vida humana é mais do que um processo biológico que deve
ser continuado em todas as circunstâncias” vs “ o Estado tem o interesse em
preservar a vida independentemente da sua qualidade”
·
caso Baby K - decidida pelo
tribunal a continuação do suporte avançado de vida num recém-nascido com
anencefalia, a pedido dos pais
·
caso H Wanglie – decidido pelo tribunal recusar outros representantes
legais numa situação em que o marido aceitava limitação terapêutica
·
caso C Gilgum – decidido pelo tribunal absolver os médicos após WD de
suporte de vida contra a vontade da filha da doente
A nomeação do representante legal pode também levantar algumas questões:
frequentemente o médico assume esse estatuto, como acontece quando, no caso de
Portugal, é retirada pelo Tribunal de Menores a representação legal aos pais
para a atribuir ao médico. Este princípio é frequentemente subjacente a
diversas decisões na Europa, sendo que nos EUA pode o doente previamente (em
“testamento de vida”) ou no momento (se estiver em condições de o fazer),
assumir ou indicar quem o representa.
Augusto Lopes Cardoso
salienta (in DNR E SUSPENSÃO DE SAV – BREVE PERSPECTIVA JURÍDICA, 1º Congresso
Nacional do Conselho Português de Ressuscitação, Porto 27-11-1999) que
“constitui um crime de ofensa à integridade física uma intervenção ou
tratamento ... em desacordo com as leges artis, segundo o estado do
conhecimento e da experiência da medicina...
Não é eutanásia (cf.artºs
133º e 134º CPenal):
- a omissão de
tratamentos inúteis – antes constitui obrigação do médico, sob pena de agir
contra o artº 150º CPenal
- a interrupção de
meios artificiais – antes é obrigação sua pela mesma razão, caso por excelência
de DNR ou da suspensão de Suporte Avançado de Vida (SAV) – que quer do ponto de
vista ético quer do ponto de vista jurídico, não diferem”.
Neste mesmo documento é
reconhecido que “as situações de intervenção ou não intervenção médica, sem intervenção
judicial e por vontade de outrem, que não a do paciente (os menores, os
incapazes, os incapacitados, os portadores de anomalia psíquica sujeitos a
internamento compulsivo de urgência): decisão de intervenção considerada
errónea de acordo com as leges artis, do médico, que nem é obrigado nem
pode aceitar a decisão de eutanásia, nem pode aceitar o testamento de vida, nem
fazer terapia fútil... nem pode aceitar não interromper tratamento inútil ou de
meios artificiais (não suspensão de SAV)” e ainda que a “decisão de não
intervenção quando ela é desejável de acordo com as leges artis, o
médico não deve cumprir essa vontade e deve agir contra ela, não se acobertando
na exigência do termo de responsabilidade; em caso de urgência deve agir
imediatamente, sem outro apoio à decisão médica, comunicando à Direcção
Clínica; não sendo urgente deve requerer ao Tribunal, se possível com o apoio
da Direcção Clínica, uma medida adequada (em especial ao Tribunal de
Menores)...”
A Ética é importante para os doentes que são tratados nas UCIs e é
também para os profissionais que os tratam. Diariamente os profissionais de
saúde são confrontados com a necessidade de tomar decisões que envolvem a
aplicação dos princípios fundamentais da
ética moderna e a confrontá-los com o “império” dos dados científicos,
dos aspectos tecnológicos e da relação custo/benefício; no entanto o que o
doente espera, acima de tudo, é que o seu médico o trate com compaixão,
lealdade, discernimento e integridade, nunca o prejudicando e planeando todas
as acções para seu benefício, com respeito pela sua opinião em todas as
situações que envolvam decisões sobre o seu corpo.
As decisões na triagem, admissão e alta da UCI, assim como as decisões
no final da vida são consideradas difíceis pelos profissionais que tendem a
tomá-las em equipa e a fundamentá-las essencialmente na avaliação do
prognóstico, tendo como princípios basilares a “beneficência” e “não fazer
mal”; é de realçar que nestes casos as preocupações com os custos e a justiça distributiva
não são importantes no processo de decisão. O doente ou o seu representante são
frequentemente envolvidos nas decisões no final da vida.
A clarificação de alguns aspectos legais é importante e pode ter
influência nas decisões mais complexas.
LEITURAS SUGERIDAS
1. Luce JM. Making
decisions about the forgoing of life-sustaining therapy. Am J Resp Crit Care
Med 1997; 156: 1715-1718.
2. Luce JM, Raffin TA. Ethical issues in critical care. New Horizons
1997; 5.
3. Fiona
R, Downie RS. Palliative Care Ethics – A Companion for all Specialities. Second
edition, Oxford University Press, 1999.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Mário Caetano Pereira pela revisão crítica deste manuscrito e ao Prof. Dr. Jorge Pimentel e ao Prof. Dr. Fernando Rua pelos seus contributos para a sua elaboração.