ÉTICA EM MEDICINA INTENSIVA

Paulo Maia

 

INTRODUÇÃO

            A aplicação dos princípios de Ética deve estar presente em todas as decisões numa Unidade de Cuidados Intensivos (UCI). Os princípios éticos são as directrizes fundamentais para determinar os procedimentos correctos: neste sentido só podemos falar de boa prática médica quando conseguimos melhorar o tratamento do doente porque integramos no processo de decisão estes mesmos princípios. À tendência para sobrevalorizar no processo de decisão os dados científicos, os aspectos tecnológicos e a relação custo/benefício, contrapõe-se a Ética para proteger e beneficiar cada um  e todos os doentes, desde a triagem para admissão na UCI até às difíceis decisões do final da vida.

A análise destas decisões é feita à luz dos quatro princípios fundamentais da Ética moderna: 1 -“primeiro não fazer mal”, 2 - beneficência, 3-  respeito pela autonomia do doente e 4 - justiça distributiva.

 

PRINCÍPIOS ÉTICOS

Os princípios éticos designam normas gerais de conduta: a sua descrição pretende valorizar a sua importância absoluta e alertar os profissionais no sentido de  reforçarem a influência destes valores nas decisões.

1.      “Primeiro não fazer mal”

Este princípio consagra claramente o dever de evitar prejudicar o doente. 

A Ética Médica era encarada em função dos deveres dos médicos em relação aos doentes e podemos afirmar que desde o tempo de Hipócrates  e até cerca de 1960 este princípio e o princípio de beneficência fundamentavam a Ética Médica.

 São aplicações deste princípio:

-         os cuidados paliativos e a prevenção ou minimização dos danos físicos ou morais no doente agónico

-         as atitudes que preservem a unidade da família (dizer a verdade, evitar ambiguidades, promover a confiança). A verdade, no entanto, deve ser honesta sem ser cruel, evitando sempre a criação ou fomentação de estigmas sociais. 

2.      Beneficência

O segundo princípio da Ética Médica clássica reconhece o dever de planear as acções  para o bem do doente: procurar o seu bem-estar. Estas acções devem ser efectuadas considerando que o benefício é maior que o potencial prejuízo.

São aplicações deste princípio:

-         melhorar a qualidade de vida ou o processo de morte (retirando assim aos profissionais de saúde a ansiedade ou o complexo de culpa)

-         a procura do bem comum ou a melhoria da saúde pública (compromisso dos profissionais de saúde e das instituições).

3.      Autonomia do doente

A partir dos anos 70, os códigos de Ética Médica juntam cada vez mais “o respeito pelas decisões autónomas dos doentes” aos princípios clássicos, reconhecendo o direito soberano do doente para decidir sobre todos os assuntos que envolvam o seu corpo (respeito pela “pessoa” do doente). O valor crescente da autonomia surge como consequência dos movimentos pelo respeito dos direitos dos doentes após a denúncia de vários abusos na investigação de novas terapêuticas, a que não é alheio o papel da enfermagem como ponte entre o doente (com as suas dificuldades de expressar a vontade de ser considerado nas decisões que dizem respeito ao seu corpo) e os médicos (numa tradição paternalista da medicina)  Este princípio tem no entanto uma leitura diferente na tradição filosófica de  Kant – a autonomia é uma decisão racional, expresse ou não a preferência, e na tradição liberal de J. S. Mill – a autonomia é uma decisão que exprime a preferência, seja ou não racional. A este princípio fica associado o consentimento informado no contexto da consulta profissional.

     São aplicações deste princípio:

-         o direito à escolha, à aceitação e à recusa de tratamentos

-         o direito à morte com dignidade

-         o direito ao respeito pela convicção religiosa, em todos os momentos

-         o direito de escolher o representante

-         o direito a saber (ou a querer não saber)

-         o direito a alterar a opinião e a decisão

-         o direito à privacidade e à confidencialidade

-         a responsabilização do doente

4.      Justiça distributiva

Este princípio surge como consequência do anterior e realça o mérito de tratar todas as pessoas de forma equitativa e justa, salientando o bem geral mesmo quando se analisa um acto ou procedimento particular (a utilização de técnicas e tratamentos sem indicação médica deve ser encarada como desperdício de recursos e portanto evitada).

Neste contexto merece uma nota especial a futilidade diagnóstica ou terapêutica, entendida como o conjunto de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos com baixa probabilidade de fazer o doente regressar a um estado físico, mental ou social aceitável. Introduzem-se assim duas facetas do mesmo conceito: uma quantitativa (probabilidade de sobreviver) e outra qualitativa (sobreviver com qualidade de vida aceitável no modelo do doente e da sua família). Salienta-se que duma forma geral os doentes toleram uma perda de qualidade de vida superior àquela que os profissionais de saúde aceitariam. 

A aplicação destes princípios gera frequentemente dilemas quer nos profissionais, quer  entre os profissionais, quer ainda entre estes e os doentes ou os seus familiares. Os valores que resultam da interpretação destes princípios  devem fortalecer o trabalho em equipa e a partilha das decisões. Algumas das dificuldades podem ser ultrapassadas melhorando a compreensão e a tolerância, aprendendo a saber ouvir e a evitar  quer as expressões ambíguas quer a tendência para o individualismo.

No entanto,  as maiores dificuldades podem ser consideradas quer a escolha do representante do doente (ou do melhor representante do doente), dados o contexto legal e institucional, quer a definição dos limites da autonomia.

 

DECISÕES NA TRIAGEM, ADMISSÃO E ALTA DA UCI

A procura de cuidados intensivos é potencialmente superior à oferta: assim pode justificar-se a necessidade de distribuir os limitados serviços e bens aos doentes que deles mais podem beneficiar.

Define-se:

 - alocação como o termo geral que compreende a  triagem e a racionalização relativamente ao processo de distribuição de recursos; divide-se artificialmente em microalocação, quando limitada ao âmbito de um doente ou uma cama duma UCI e macroalocação, ao nível de decisões de política de saúde,

- triagem (cujas raízes estão na medicina militar), termo que se refere ao estabelecimento  de prioridades e distribuição por classes de prioridade, baseado no grau de necessidade de cuidados (pretendia que os soldados mais graves recebessem tratamento antes dos menos graves, independentemente da patente militar); evoluiu no sentido utilitário, isto é, maior bem para o maior número.

As difíceis decisões que os profissionais necessitam tomar na aceitação ou recusa de admissão do doente à UCI são frequentemente determinadas anteriormente quando politicamente é decidido atribuir a uma região ou hospital um número de camas de cuidados intensivos inferior às suas necessidades.

Usualmente, quando as camas são escassas, a gravidade média dos doentes admitidos na UCI aumenta, aumentando a mortalidade: tendencialmente são admitidos os doentes que beneficiam em menor grau com o tratamento intensivo. É reconhecido  que até 20% dos doentes internados nos hospitais beneficiariam com o tratamento numa UCI, e também que os doentes que são admitidos após uma recusa prévia têm uma mortalidade maior do que aqueles que são admitidos na primeira proposta, para o mesmo grau de gravidade (APACHE II entre 11 e 20).

Os mesmos princípios éticos são aplicados relativamente à decisão de alta da UCI; merecem consideração neste caso o diagnóstico na admissão, a gravidade e o prognóstico da doença e os objectivos terapêuticos. A necessidade de admissão de um doente (princípio da beneficência)  não deve ser motivo para antecipar a alta de outro doente (princípio de “primeiro não fazer mal”). A incerteza quanto ao prognóstico do doente limita a capacidade de decisão, mas não deve servir para negar ou atrasar o tratamento a doentes que possam beneficiar mais.

Portanto, as difíceis decisões de triagem, de admissão e de alta devem ser tomadas em equipa e seguir recomendações aprovadas pelos médicos. Os cuidados intensivos devem ser geralmente reservados para os doentes com razoável potencial de recuperação (devem portanto excluir-se os doentes demasiado graves e os pouco graves – em qualquer dos grupos é provável que o resultado seja o mesmo com ou sem o internamento na UCI).

 

DECISÕES NO FINAL DA VIDA

As questões éticas relacionadas com a proximidade da morte merecem uma análise especial. Convém portanto definir claramente os conceitos.

Suspensão de tratamento (withhold treatment - WH) – decisão de não iniciar ou de não aumentar uma terapêutica potencialmente salvadora da vida (por exemplo aminas vasopressoras; inclui  ressuscitação cardiopulmonar - WHCPR).

Retirada de tratamento (withdrawing treatment - WD) – decisão de retirar activamente uma terapêutica salvadora da vida. Inclui por exemplo descontinuação de ventilação mecânica ou de terapêutica vasopressora. Aplica-se a tratamentos que não estão a ser eficazes ou que não têm o potencial de fazer reverter a evolução da doença.

Encurtamento activo do processo de morte – eutanásia ou suicídio assistido, seja pela administração de uma dose letal de anestésico, de narcótico ou de cloreto de potássio.

Ressuscitação cardiopulmonar – inclui  ventilação artificial e massagem cardíaca. Pode anteceder a morte por ser ineficaz.

Morte cerebral – cessação documentada (de acordo com a lei) da função cerebral e ausência de resposta à estimulação de todos os nervos cranianos.

A suspensão do início de  terapêutica/retirada de terapêutica já iniciada (questões colocadas frequentemente como tendo o mesmo valor ético e suportadas por diversas decisões legais – fundamentadas na impossibilidade de atingir os objectivos principais a que se destina a terapêutica) podem ser ponderadas nas situações de doença terminal (crónica, neurológica),  falência múltipla de órgãos,  qualidade de vida inaceitável para o doente, etc. Estas decisões são sempre difíceis e merecem ponderação caso a caso.

Inquéritos realizados a médicos das UCI’s indicam que usam estes métodos  regularmente e que recomendam a sua utilização com base no prognóstico. Importa salientar que até 70% das mortes nas UCI’s podem ocorrer após alguma forma de WH/WD e que normalmente o doente ou a família são consultados, uma vez que estas decisões são tomadas para evitar o prolongamento do sofrimento do doente, num contexto de terapêutica sem esperança. Sempre que se procede a limitação terapêutica é obrigatório manter os cuidados de higiene e conforto, assim como garantir uma morte digna. (As terapêuticas podem ser retiradas ou não iniciadas em conjunto ou individualmente, sendo a ordem diferente de caso para caso e de UCI para UCI. As consequências para o doente são diversas e podem incluir – para o exemplo  da nutrição artificial - sede, sensação de boca seca e inflamação oral, desassossego, náuseas, fome: é obrigatório atenuar o desconforto do doente e tomar atitudes tendentes a melhorar a qualidade de vida dos últimos momentos. Refira-se que a nutrição artificial é, nestes doentes, uma das últimas terapêuticas a retirar nos diversos países e culturas).

Os doentes em morte cerebral mantêm frequentemente cuidados que incluem a administração de fármacos e fluidos com o objectivo de manutenção do dador até à colheita de órgãos, sendo portanto a excepção ao princípio da beneficência: a interrupção da terapêutica nestas condições não coloca problemas éticos.

 

 

ASPECTOS LEGAIS

Os médicos são influenciados nas suas atitudes pela forma como entendem a aplicação da lei. Se em relação à constatação da “morte cerebral” e ao “encurtamento activo do processo de morte” a legislação é normalmente clara na maioria dos países (permitindo a primeira e proibindo a segunda – a Holanda é uma excepção) a aplicação pode num mesmo país, relativamente a WH/WD conduzir a decisões diferentes. Como exemplo apresentam-se algumas decisões de tribunais nos EUA:

·        “o conceito da vida humana é mais do que um processo biológico que deve ser continuado em todas as circunstâncias” vs “ o Estado tem o interesse em preservar a vida independentemente da sua qualidade”

·        caso Baby K -  decidida pelo tribunal a continuação do suporte avançado de vida num recém-nascido com anencefalia, a pedido dos pais

·        caso H Wanglie – decidido pelo tribunal recusar outros representantes legais numa situação em que o marido aceitava limitação terapêutica

·        caso C Gilgum – decidido pelo tribunal absolver os médicos após WD de suporte de vida contra a vontade da filha da doente

A nomeação do representante legal pode também levantar algumas questões: frequentemente o médico assume esse estatuto, como acontece quando, no caso de Portugal, é retirada pelo Tribunal de Menores a representação legal aos pais para a atribuir ao médico. Este princípio é frequentemente subjacente a diversas decisões na Europa, sendo que nos EUA pode o doente previamente (em “testamento de vida”) ou no momento (se estiver em condições de o fazer), assumir ou indicar quem o representa.

Augusto Lopes Cardoso salienta (in DNR E SUSPENSÃO DE SAV – BREVE PERSPECTIVA JURÍDICA, 1º Congresso Nacional do Conselho Português de Ressuscitação, Porto 27-11-1999) que “constitui um crime de ofensa à integridade física uma intervenção ou tratamento ... em desacordo com as leges artis, segundo o estado do conhecimento e da experiência da medicina...

Não é eutanásia (cf.artºs 133º e 134º CPenal):

-       a omissão de tratamentos inúteis – antes constitui obrigação do médico, sob pena de agir contra o artº 150º CPenal

-       a interrupção de meios artificiais – antes é obrigação sua pela mesma razão, caso por excelência de DNR ou da suspensão de Suporte Avançado de Vida (SAV) – que quer do ponto de vista ético quer do ponto de vista jurídico, não diferem”.

Neste mesmo documento é reconhecido que “as situações de intervenção ou não intervenção médica, sem intervenção judicial e por vontade de outrem, que não a do paciente (os menores, os incapazes, os incapacitados, os portadores de anomalia psíquica sujeitos a internamento compulsivo de urgência): decisão de intervenção considerada errónea de acordo com as leges artis, do médico, que nem é obrigado nem pode aceitar a decisão de eutanásia, nem pode aceitar o testamento de vida, nem fazer terapia fútil... nem pode aceitar não interromper tratamento inútil ou de meios artificiais (não suspensão de SAV)” e ainda que a “decisão de não intervenção quando ela é desejável de acordo com as leges artis, o médico não deve cumprir essa vontade e deve agir contra ela, não se acobertando na exigência do termo de responsabilidade; em caso de urgência deve agir imediatamente, sem outro apoio à decisão médica, comunicando à Direcção Clínica; não sendo urgente deve requerer ao Tribunal, se possível com o apoio da Direcção Clínica, uma medida adequada (em especial ao Tribunal de Menores)...”

 

CONCLUSÕES

A Ética é importante para os doentes que são tratados nas UCIs e é também para os profissionais que os tratam. Diariamente os profissionais de saúde são confrontados com a necessidade de tomar decisões que envolvem a aplicação dos princípios fundamentais da  ética moderna e a confrontá-los com o “império” dos dados científicos, dos aspectos tecnológicos e da relação custo/benefício; no entanto o que o doente espera, acima de tudo, é que o seu médico o trate com compaixão, lealdade, discernimento e integridade, nunca o prejudicando e planeando todas as acções para seu benefício, com respeito pela sua opinião em todas as situações que envolvam decisões sobre o seu corpo.

As decisões na triagem, admissão e alta da UCI, assim como as decisões no final da vida são consideradas difíceis pelos profissionais que tendem a tomá-las em equipa e a fundamentá-las essencialmente na avaliação do prognóstico, tendo como princípios basilares a “beneficência” e “não fazer mal”; é de realçar que nestes casos as preocupações com os custos e a justiça distributiva não são importantes no processo de decisão. O doente ou o seu representante são frequentemente envolvidos nas decisões no final da vida.

A clarificação de alguns aspectos legais é importante e pode ter influência nas decisões mais complexas.

 

LEITURAS SUGERIDAS

1.    Luce JM. Making decisions about the forgoing of life-sustaining therapy. Am J Resp Crit Care Med 1997; 156: 1715-1718.

2.    Luce JM, Raffin TA. Ethical issues in critical care. New Horizons 1997; 5.

3.    Fiona R, Downie RS. Palliative Care Ethics – A Companion for all Specialities. Second edition, Oxford University Press, 1999.

 

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Mário Caetano Pereira pela revisão crítica deste manuscrito e ao Prof. Dr. Jorge Pimentel e ao Prof. Dr. Fernando Rua pelos seus contributos para a sua elaboração.