MONITORIZAÇÃO DA CIRCULAÇÃO NO DOENTE COM TRAUMATISMO CRANEO-ENCEFÁLICO
Margarida Rios1 e Óscar L. Alves2
Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente da Urgência,
Hospital S. João, Porto1 e Serviço de Neurocirurgia, Hospital
Lariboisière, Paris2.
INTRODUÇÃO
O tratamento do doente com traumatismo
crânio-encefálico (TCE) grave obriga necessariamente à admissão numa Unidade de
Cuidados Intensivos (UCI). É o local indicado para a instituição de terapêutica
de suporte e para a monitorização dos parâmetros fisiológicos sistémicos e do
sistema nervoso central (SNC) com o objectivo de impedir ou reverter o
estabelecimento da lesão cerebral secundária. Para além dos meios técnicos de
monitorização, é fundamental a formação adequada dos enfermeiros e médicos da
UCI para interpretar os dados da monitorização e actuar de forma imediata e
correcta. Isto aplica-se igualmente às observações neurológicas regulares que
são parte integrante da monitorização clínica destes doentes.
FISIOPATOLOGIA
Após a lesão cerebral primária produzida
pelo impacto inicial do traumatismo, há uma vulnerabilidade acrescida do
cérebro à isquemia. A lesão isquémica constituí o evento central da lesão
cerebral secundária. Cerca de 80% dos doentes que faleceram em consequência de
um TCE, apresentam na autópsia lesões cerebrais isquémicas (1). Um aspecto
relevante da fisiologia permite compreender este fenómeno: apesar do seu peso
insignificante no conjunto do peso corporal, o cérebro recebe 25% do débito
cardíaco. Concorre também para esta maior vulnerabilidade do cérebro à isquemia
o facto de o fluxo sanguíneo cerebral estar geralmente diminuído nas primeiras
horas após o traumatismo (2). Acresce ainda que uma percentagem significativa
de doentes apresenta traumatismos extracranianos associados que são causa de
hipovolémia ou hipotensão, que vão contribuir para a instalação da isquemia.
Estes aspectos têm implicações importantes para a monitorização e tratamento
imediato destes doentes.
A lesão cerebral secundária pode
subdividir-se em lesões com efeito de
massa progressivo, geradoras de hipertensão intracraniana que se opõe naturalmente à perfusão
cerebral, como os hematomas intracranianos tardios ou o edema cerebral, ou
ainda em lesões que resultam de alterações sistémicas (hipóxia, hipercapnia,
hipotensão, acidose). Em ambos os casos, o evento crucial é o desajuste entre o
fornecimento de nutrientes (O2 e glicose) e as necessidades metabólicas, o que
por definição favorece a instalação da isquemia cerebral. Este mesmo desajuste
explica o efeito deletério das convulsões no doente com traumatismo craniano.
Da análise dos dados do Traumatic Coma Data Bank dos Estados Unidos (3), a hipotensão arterial
surge como um factor de prognóstico independente. A ocorrência de hipotensão
duplica a mortalidade. Assim, a atitude terapêutica a iniciar em 1ª linha no
doente com TCE grave é a ressuscitação de volume, circulatória e ventilatória
para atingir valores de pressão de perfusão cerebral e oxigenação adequados.
Ao contrário de outros órgãos, o cérebro
possuí uma capacidade de autoregulação que é desencadeada, não pela pressão
arterial sistémica, mas pelo gradiente de pressão ao longo da sua árvore
vascular cerebral - ou seja, da chamada pressão de perfusão cerebral (PPC). Daí
a necessidade de monitorizar a circulação cerebral, além da circulação
sistémica, nos doentes com traumatismo craniano.
Alguns dos mecanismos de compensação, que
regulam a perfusão cerebral, estão alterados nos doentes com TCE. Um grande
número destes doentes perdeu a sua capacidade de autoregulação, o que significa
que o seu fluxo sanguíneo cerebral varia directamente com a pressão arterial
média. Para pressões arteriais médias baixas, inferiores a 100 mmHg (4), estes
doentes não conseguem manter um fluxo sanguíneo cerebral constante e adequado.
Um segundo fenómeno pode ainda acontecer nestes doentes: o desvio da sua curva
de autoregulação para a direita. Estes
doentes só começam a autoregular a partir de valores de pressão arterial média
superiores aos habituais e por isso estão dependentes de boas pressões para
manter um fluxo sanguíneo cerebral constante e adequado. Daqui ressalta a
importância de monitorizar à cabeceira de doente a circulação sistémica, por um
lado, e a perfusão cerebral, por outro. . A monitorização circulatória cerebral
é feita primariamente através do
cálculo da pressão de perfusão cerebral, e adicionalmente pela medição da
velocidade de fluxo sanguíneo cerebral com o Doppler Transcraniano.
MONITORIZAÇÃO DA
CIRCULAÇÃO SISTÉMICA
Para além de identificar as variações
extremas da pressão arterial (PA) que invalidam o exame neurológico, quer no
local do acidente, durante o transporte ou na UCI, a monitorização continua da
PA permite detectar precocemente a elevação da PIC ou compressão do tronco
cerebral por lesões com efeito de massa. O reflexo de Cushing - hipertensão
e/ou bradicardia - no doente com TCE deve conduzir imediatamente à reavaliação
clínica e imagiológica para diagnosticar a causa do encravamento cerebral.
Valores de PA sist. < 60mmHg
impedem a valorização do exame neurológico do doente com TCE grave (4). Neste
contexto os sinais clínicos de disfunção do tronco cerebral podem reflectir,
não o efeito compressivo por uma lesão expansiva, mas sim uma isquemia cerebral
difusa. No tecido cerebral normal, PA sist. >60mmHg assegura um fluxo
sanguíneo cerebral adequado e constante, de acordo com a curva de
autoregulação. Abaixo desse valor geralmente ocorre a isquemia cerebral. No
doente com TCE, a autoregulação cerebral está alterada e são necessários
valores mais altos de PA para manter a perfusão cerebral adequada (5). Está já
bem demonstrada a importância prognóstica da hipotensão na lesão neurológica
secundária e por isso a monitorização invasiva da pressão arterial deve ser
instituída o mais precocemente possível na abordagem do doente com TCE. Mesmo
não sendo possível determinar logo o valor da pressão de perfusão cerebral
(PPC- diferença entre a PA média e a PIC)), podem identificar-se e reverter-se
valores de PA média<90mmHg. A medição da PIC permite calcular a PPC que é o
indicador clínico da circulação cerebral e iniciar a estratégia de chamada “ CPP-directed management” que se baseia
na teoria da cascata vasodilatadora defendida por Rosner et al (6). Segundo
estes autores, uma diminuição da PPC, quer por aumento da PIC, quer por
diminuição da PA, estimula a vasodilatação dos vasos cerebrais numa tentativa
de manter o fluxo sanguíneo cerebral. Como isto leva ao aumento do volume
sanguíneo cerebral, diminui ainda mais a PPC, desencadeando um ciclo vicioso
que só é interrompido por elevação da PA. Esta abordagem tem sido amplamente
aceite e foi incluída nas Guidelines da
Brain Trauma Foundation como uma opção - método de tratamento sugerido
embora sem superioridade comprovada sobre outros métodos aplicáveis (7). No
entanto, ao contrário da evidência já acumulada em relação à importância da
hipotensão para o prognóstico, não há evidência de que hipertensão induzida
seja benéfica (para além de evitar a
hipotensão), nem em relação ao melhor fármaco vasopressor a usar. Há
ainda a considerar os potenciais efeitos sistémicos negativos da estratégia
dirigida a PA elevada para PPC >70mmHg (8). Neste sentido, pode ser
necessário monitorização hemodinâmica mais invasiva com catéter na artéria
pulmonar para avaliar pressão de enchimento do ventriculo esquerdo e débito
cardíaco. Isto torna-se tanto mais justificado se tivermos em conta que se
trata frequentemente de doentes politraumatizados que podem ter hipovolémia
pelas outras lesões traumáticas bem como pela terapêutica anti-edematosa com
manitol. Por outro lado, pode haver hipotensão por efeito vasodilatador de
sedativos ou barbitúricos. A utilização de aminas vasopressoras, para aumentar
a PPC, pode comprometer o débito cardíaco em doentes com reserva cardíaca
diminuida por aumento das resistências vasculares sistémicas pelo que se impõe
a sua monitorização.
MONITORIZAÇÃO DA
PIC E PPC
A monitorização da pressão
intracraniana (PIC) deve ser realizada em todos os doentes com TCE grave.
Embora a sua utilidade em termos da melhoria do prognóstico dos doentes com TCE
grave nunca tenha sido comprovada em ensaios prospectivos randomizados , há
evidência indirecta suficiente que justifica a sua utilização. A dedução do
valor da PIC ao valor da pressão arterial média permite obter a pressão de perfusão
cerebral (PPC) instantânea. No tratamento escalonado, orientado pelos valores
da PPC, constatou-se uma melhoria significativa dos resultados neurológicos e
funcionais se esta pressão se mantiver acima dos 70 mmHg. Nos doentes com
lesões traumáticas extracranianas que obrigam a cirurgia precoce a
monitorização da PIC e da PPC tem um valor indiscutível na detecção
per-operatória de hipotensão excessiva ou dos picos de hipertensão
intracraniana relacionados com manobras de intubação e parâmetros ventilatórios.
A monitorização da PIC e da PPC permite
ainda orientar atitudes terapêuticas com risco potencial como hiperventilação,
manitol, barbitúricos e fornece informação prognóstica.
Apesar do conceito de «CPP-management» estar expresso nos protocolos da maioria das
instituições, recentemente Eker et al. (9) lançaram a ideia de um tratamento
anti-hipertensor baseado no pressuposto do edema cerebral ser o mecanismo
fisiopatológico mais importante nestes doentes. Se os seus resultados apenas
foram validados contra controles históricos, têm pelo menos o mérito de
desafiar um dogma terapêutico. Com efeito a terapêutica com vasopressores para
forçar a perfusão cerebral parece não estar adequada para todos os doentes pois
pode favorecer o desenvolvimento de edema cerebral e o aumento da PIC. Como
recentemente assinalou C. Robertson et al. a ocorrência de efeitos laterais
sistémicos desta terapêutica, como por exemplo o ARDS, tem um impacto negativo
nos resultados neurológicos destes doentes (8).
MONITORIZAÇÃO COM
DOPPLER TRANSCRANIANO
O Doppler transcraniano (DTC) permite
medir a velocidade do fluxo sanguíneo nas artérias do polígono de Willis, não
fornecendo qualquer informação sobre a microcirculação cerebral. Os dados que
se obtêm sob a circulação cerebral são de carácter qualitativo, permitindo a
detecção de doentes que têm uma velocidade de fluxo aumentada, a que podem
corresponder situações tão opostas com o vasospasmo ou a hiperemia. Daí a
necessidade de estabelecer protocolos de monitorização multimodal com outras
técnicas para a ponderação dos resultados obtidos.
Embora velocidades de fluxo superiores a
120cm/seg sejam consideradas elevadas, o incremento diário de 20cm/seg tem
maior valor informativo. O problema deste método de avaliação reside na grande
variabilidade inter-observador e na baixa sensibilidade para as situações de
isquemia. Ou seja, quando a velocidade de fluxo é superior a 200cm/seg existe
com grande probabilidade uma isquemia cerebral (elevada especificidade), mas a
maioria das situações de isquemia cerebral detectadas por outros métodos não
apresentam valores anormais de velocidade de fluxo. Na zona entre os 120-200
cm/seg já considerada anormal, o grau de especificidade é muito pequeno (10). A
monitorização com DTC pode também identificar estados de baixo fluxo, inversão
da onda diastólica ou mesmo a ausência de fluxo como na morte cerebral,
orientando a informação prognóstica. Alguns autores defendem ainda a existência
de uma correlação entre a pressão intracraniana e o índex de pulsatilidade
(IP), que a maioria dos novos aparelhos fornece instantaneamente, calculada a
partir de um coeficiente ente a velocidade sistólica e diastólica. Por outro
lado, tem a vantagem de ser não invasivo, ser portátil e, logo, passível de ser
realizado à cabeceira do doente e de forma repetida.
A monitorização da circulação cerebral por doppler
transcraniano permite seguir os efeitos de
PIC elevada e o benefício obtido com a estratégia de aumentar a CPP,
podendo mesmo delinear-se a nova curva de auto-regulação (11).
MONITORIZAÇÃO DA
SATURAÇÃO VENOSA JUGULAR DE O2
A monitorização da saturação de oxigénio
do bolbo jugular (SjvO2) permite estabelecer a relação entre os parâmetros
sistémicos (PA, PO2, PCO2) e a fisiopatologia da circulação cerebral (12). Permite
calcular a relação entre o fornecimento de oxigénio ao SNC (fluxo sanguíneo
cerebral) e a taxa metabólica cerebral
para o O2 segundo a equação de Fick:
CMRO2= DavjO2 X CBF
CMRO2 - taxa de metabolismo cerebral do oxigénio
DavO2 -
diferença arteriovenosa da concentração de oxigénio
CBF - fluxo sanguíneo cerebral
Para valores constantes de hemoglobina,
de saturação da hemoglobina e da sua curva de dissociação, a SvjO2 é
directamente proporcional à relação entre o fluxo sanguíneo cerebral e a taxa
metabólica cerebral. A determinação da saturação jugular de O2 pode ser feita
por colheitas intermitentes ou continuamente com catéter de fibra óptica. Os
valores normais estão entre 55-75%, o que mostra uma faixa estreita de possível
ajuste entre a circulação e o metabolismo cerebral. SvjO2 inferior a 55% revela
isquemia cerebral, enquanto valores superiores a 75% indicam hiperemia. O
principal interesse desta forma de monitorização reside na possibilidade de
titular os parâmetros ventilatórios em função dos limiares de isquemia para
cada doente, em cada momento, e não em função da PaCO2, quando se instituí uma
hiperventilação terapêutica. Nas situações de hiperemia cerebral
pós-traumática, que por vezes acontece nos doentes jovens com lesão cerebral
difusa, a hiperventilação reduz o volume vascular cerebral e, deste modo,
produz uma redução eficaz da PIC. Por outro lado, existe alguma evidência na
literatura que a identificação de episódios de dessaturação cerebral se correlaciona
com um pior prognóstico (13).
Esta técnica tem como limitação principal
o facto de não identificar a isquemia regional, o que é significativo se
considerarmos que o traumatismo craniano é uma doença com uma variabilidade
fisiopatológica regional importante. Este défice pode ser colmatado com a
medição da pressão tecidular de O2
(PtiO2) que acrescenta outra dimensão à monitorização cerebral dado constituir
um índice de oxigenação a nível local.
O catéter deve ser colocado numa área do cérebro sujeito à isquemia, mas ainda viável . Trabalhos recentes põem ainda em evidência
que a monitorização da SjvO2 não reduz o número de episódios de hipertensão
intracraniana refractária ao tratamento. E ainda que em alguns casos pode mesmo
existir hipoperfusão regional importante perante valores de SjvO2 normais (13).
Estes dados sugerem alguma moderação no entusiasmo excessivo que alguns autores
manifestam em relação ao valor da monitorização da SjvO2 (14).
MONITORIZAÇÃO COM
EEG
A monitorização da actividade eléctrica
cerebral com electroencefalograma (EEG) fornece também um contributo para a
orientação deste tipo de doentes. A actividade eléctrica cerebral reflecte o
metabolismo celular que depende de modo
crítico do fluxo sanguíneo cerebral para o fornecimento de glicose e O2. O
limiar de fluxo sanguíneo cerebral a partir do qual surgem alterações no EEG é
de 30ml/100mg/min, com o silêncio eléctrico a ocorrer à volta dos
15-20ml/100mg/min. Como o cérebro não tem reservas de oxigénio e glicose, uma alteração do EEG torna-se
imediatamente visível para níveis isquémicos de fluxo cerebral. Como função
adicional, a monitorização EEG permite ainda detectar a existência de crises
convulsivas silenciosas no doente sedado, mas que concorrem para um prognóstico
desfavorável.
CONCLUSÃO
Como noutras áreas, a
monitorização intensiva dos doentes com TCE grave permitiu compreender melhor
os mecanismos fisiopatológicos da lesão cerebral traumática e originou outras
formas de monitorização cada vez mais sofisticadas e informativas. Em geral, estas técnicas de
monitorização confirmaram a importância dos parâmetros circulatórios sistémicos
para a lesão neurológica secundária e para o prognóstico. Apesar dos avanços
conceptuais, há ainda um trabalho importante na investigação básica da lesão
cerebral traumática a ser feito de forma a tornar a intervenção terapêutica
mais racional e dirigida. Esse tipo de informação poderá surgir das técnicas de
microdiálise que permitem dosear as substâncias químicas no interstício
cerebral e, deste modo, conhecer directamente o impacto do traumatismo no
metabolismo cerebral.
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