Pedro Matos Moreira

   Unidade de Cuidados Intensivos – Hospital Garcia de Orta, Almada

   Portugal


 

Ventilação Mecânica no Traumatizado Torácico

 

 

Pretende-se ao abordar a ventilação no traumatizado torácico rever os conceitos actuais de ventilação no ALI/ARDS. Estas 2 entidades pela sua gravidade são uma das principais causa de mortalidade  do grande traumatizado, e não exclusivas do traumatizado torácico

 

O Síndroma de Dificuldade Respiratória do Adulto (ARDS) é um processo inflamatório pulmonar agudo que atinge doentes médicos e cirúrgicos. Atinge especificamente a barreira alveolar e a capacidade de troca gasosa do pulmão. Inicialmente predomina a inundação dos espaços alveolares e posteriormente com a manutenção do processo inflamatório predomina a proliferação celular com deposição de colageneo e “remodelação” pulmonar.

A sua mortalidade situa-se tradicionalmente acima de 50%.

Embora reconhecido como síndroma desde 1967, só recentemente foram definidos critérios clínicos (Conferência de Consensos Americana-Europeia de 1994); este grupo definiu 2 entidades distintas mas complementares – Lesão Pulmonar Aguda (ALI) e o ARDS (1).

 

Os factores de risco para o desenvolvimento do ALI/ARDS incluem as Lesões Pulmonares Directas, como a aspiração de conteúdo gástrico, pneumonia e a contusão pulmonar, e as Lesões Pulmonares Indirectas, traduzindo uma resposta inflamatória desadequada em entidades como a sepsis, pancreatite, transfusão maciça ou embolia gorda.

 

Publicado recentemente um estudo de Hudson e al (2) avaliou prospectivamente os doentes com factores de risco para a instalação de ALI/ARDS e verificou uma incidência de 25% nos politraumatizados e de 40% nos sujeitos a transfusões maciças (>15 u/24h)

 

Dois estudos interessantes de Gatinnoni e al (3) avaliam as diferentes repercussões pulmonares do ALI/ARDS provocado pela lesão pulmonar directa/ indirecta, demonstrando diferenças clinicas, imagiológicas e funcionais entre os 2 grupos.

No grupo do ALI/ARDS associado à lesão pulmonar directa haveria predomínio da consolidação pulmonar em oposição ao edema intersticial  e colapso alveolar na lesão indirecta; as modificações induzidas na mecânica pulmonar e nomeadamente a resposta a ventilação com PEEP seriam diferentes nos 2 grupos.

 

Apenas uma pequena percentagem de doentes traumatizados apresentam critérios de ALI/ARDS no período imediato após o trauma; nos 3 grandes grupos etiológicos do ALI/ARDS (sepsis, trauma e outras causas), cerca de 50% desenvolveram quadro de ARDS nas primeiras 24 h após a situação de risco, 85% às 72 h e os restantes nos dias seguintes.

Estes doentes apresentam lesão pulmonar tardia relacionada com inflamação sistémica, ou são expostos a um 2º factor de risco neste período, ou ainda este atraso pode traduzir o agravamento da lesão pulmonar inicial, associada à ventilação mecânica (VILI – “ventilator induced lung injury”)

A incidência de complicações pulmonares post-traumaticas varia consoante as diferentes categorias de trauma, sendo importante definir grupos de risco em que o suporte ventilatório precoce é particularmente benéfico.

 

Um estudo recente de Hoyt et al avaliou preci­samente a incidência de complicações pulmonares e factores de risco na admissão. As complicações pulmonares estavam presentes em cerca de 12% dos doentes, sendo que o traumatismo craneo-encefalico e torácico grave apresentava 75% das complicações mais graves.

Conclui ainda que os doentes com traumatismo  fechado grave em choque e/ou em coma na admissão, aqueles que têm lesões torácicas e cranianas necessitando de intervenção cirúrgica, apresentam risco elevado de complicações pulmonares, nomeadamente ALI/ARDS, beneficiando com o suporte ventilatório precoce.

 

 

Factores de Risco para ALI/ARDS no politraumatizado:

1.     Traumatismo Torácico Fechado

2.     Injury Severity Score > 16

3.     Score de Glascow < 8

4.     Necessidade de intervenção neurocirurgica


 

 

SUPORTE VENTILATÓRIO

 

Quando ventilamos o doente traumatizado torácico ou o doente traumatizado em geral temos como objectivo suportar a função respiratória alterada evitando ou combatendo o ALI/ARDS.

No entanto devemos ter também presente o conceito de Lesão Pulmonar induzida pela Ventilação (VILI).

Estudos realizados até agora mostram que há diferenças regionais significativas na mecânica alveolar no ARDS. Trata-se de um atingimento alveolar heterogéneo com colapso não recrutável, que coexiste com zonas de alvéolos relativamente normais. Isto levou ao conceito de volutrauma em que os volumes correntes tradicionalmente usados (10 a 15 ml/kg) resultavam em lesão pulmonar iatrogénica.

Esta alterações resultavam da hiperdistensão de alvéolos ditos normais originando hiperventilação local com inibição e deplecção de surfactante. Isto ocorria porque existiam zonas alveolares irreversivelmente colapsadas que podiam representar até 80% do parênquima pulmonar. A utilização de volumes correntes elevados no pulmão que na realidade podia ter perdido 75% ou mais da sua capacidade funcional, equivalia a ventilar com cerca de 40 ml/kg as zonas não lesadas. Como consequência eram geradas pressões transalveolares muito elevadas que provocavam ruptura alveolar das zonas normais e consolidadas. Além disso a abertura e encerramento repetidos de alvéolos não recrutáveis levava muitas vezes à disjunção do epitélio alveolar. As autópsias realizadas nos doentes com ARDS que eram ventilados com os volumes convencionais elevados revelavam frequentemente dilatação bronquiolar, alterações quisticas e microabcessos

Em resumo os estudos referidos sugerem que a pressão transalveolar devem ser mantidas abaixo dos 30 mm Hg de forma a minimizar a lesão pulmonar iatrogénica. Este limite de pressão correlaciona-se com pressões de plateau de via aérea < 30 a 40 cm de agua, dependentes da compliance pulmonar e da parede torácica.

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Hipercapnia Permissiva

 

Com base no conceito do volutrauma como factor de agravamento da função pulmonar, surgiram estratégias para reduzir a pressão estática das vias aéreas.

A hipercapnia permissiva (HP) implica hipoventilação intencional e provoca hipercarbia e acidose respiratória e tem como objectivo de minimizar as pressões transalveolares.

A utilização desta estratégia permitem a elevação progressiva da PCO2 em cerca de 10 mm hg/h até um valor máximo de 80 a 100 mm hg,  tolerando pH até 7.15 antes de qualquer administração de bicarbonato e  manutenção de SaO2 de 90%.

Em geral torna-se necessária sedação e curarização eficazes para atingir estes objectivos.

Como efeitos adversos da hipercapnia temos as elevações agudas da pressão intracraniana, hipertensão ligeira, aumento do débito cardíaco e das resistências vasculares pulmonares; estes efeitos limitam a utilização desta estratégia nos traumatismo craneo-encefálicos graves, na doença cerebrovascular e nas lesões expansivas intracranianas, bem como na doença coronária grave e na falência cardíaca congestiva

Foram realizados 3 estudos avaliando o impacto da HP na mortalidade do ARDS. O estudo de Hickling et al (4) de 1994 utilizou a ventilação com baixos volumes correntes e apresentou uma mortalidade intra-hospitalar dos doentes com ARDS de 16% contra os 39% previstos com base no APACHE II; este estudo foi seguido de um segundo de tipo prospectivo pelo mesmo grupo em que se registou uma mortalidade de 26% contra os 53% de mortalidade prevista. O terceiro estudo realizado por Gentillelo et al (5) em 1995 utilizou a mesma estratégia em doentes traumatizados, e verificou uma mortalidade de 9% no grupo de HP contra 52% no grupo de controle.

 

 

Ventilação com volumes correntes baixos

 

A ventilação convencional utilizada ventilados ciclados por volume e volumes correntes de 10 a 15 ml/kg com o objectivo principal de normalizar a PaO2 e a PaCO2. Na tentativa de minimizar a VILI no doente com ALI/ARDS foram desenvolvidas novas estratégias de ventilação. Uma das abordagens que tem merecido maior atenção é a ventilação na modalidade de pressão controlada tendo como objectivo a limitação de pressão estática na via aérea a valores inferiores a 40 cm de agua, resultando tipicamente em volumes correntes baixos (4 a 8 ml/kg), hipercapnia e acidose respiratória.

Esta estratégia protege o pulmão lesado do ALI/ARDS das lesões iatrogénicas induzidas pela ventilação e ao mesmo tempo pode resultar em aumento do numero de unidades alveolares colapsadas recrutáveis.

Associada a esta estratégia podemos utilizar a inversão da relação de tempo inspiração/expiração, prolongando o tempo inspiratório; isto tem como resultado o aumento do tempo disponível para trocas gasosas alveolares e diminui o tempo de colapso expiratório dos alvéolos instáveis.

Como manobra mais comum de recrutamento dos alvéolos colapsados, aumentando assim a capacidade funcional respiratória utilizamos a Pressão Positiva no final da Expiração (PEEP).

Os níveis ideais de PEEP a usar nos doentes com ALI/ARDS são ainda motivo de inúmeras discussões, no entanto os trabalhos mais recentes mostram que o recrutamento alveolar ideal e a manutenção de volume pulmonar adequado ocorrem quando são utilizados valores de PEEP iguais ou ligeiramente superiores ao valor de inflexão inferior (Pflex) da curva inspiratória estática de pressão-volume.

 

Esta curva apresenta 2 pontos de inflexão; o primeiro e menor corresponde à pressão de abertura da maioria dos alvéolos recrutáveis, e a segunda e superior corresponde ao limite de pressão em que se regista a perda de propriedades elásticas do tecido pulmonar resultante de hiperdistensão alveolar. O registo desta curva pode ser feito sem recurso a equipamento sofisticado pelo método descrito por Benitez em “Asa presión-volumen en ventilación mecanica : obtencion, interpretacion, y utilidad” publicado na edição do CIMC de 1999 (spci.org/cimc99.html).

 

 

Estratégia de “Open Lung”

 

A combinação do uso de PEEP, recrutamento e manutenção de abertura de alvéolos colapsados, e da ventilação com limite de pressão foi definida por Amato et al. e consistia no uso de valores de PEEP acima da Pflex inferior da curva de pressão-volume, uso de volumes correntes inferiores 6 ml/kg e de pressões de plateau na via aérea inferiores a < 40 cm de agua e hipercapnia permissiva.

Um numero importante de estudos comparou esta estratégia com as modalidades ventilatórias convencionais, nomeadamente o estudo do próprio Amato  de 1995 e de 1998; (6,7) nestes foi verificado a melhoria funcional respiratória e desmame mais rápido dos doentes com ARDS ventilados 2º a estratégia descrita, bem como diminuição de lesão iatrogénica pulmonar e melhoria da mortalidade aos 28 dias.

No entanto dois estudos prospectivos randomizados recentes de Brochard (8) e de Stewart (9) não revelaram diferenças na mortalidade nos doentes ventilados convencionalmente e segundo a estratégia de “open-lung”.

Por outro lado o estudo multicêntrico conduzido pela ARDSNetwork do Instituto da Saúde Americano (NIH) foi terminado precocemente por razões éticas já que os dados preliminares revelaram uma diminuição de mortalidade de 25% nos doentes ventilados segundo a estratégia protectora, ou seja com volumes correntes de 6 ml/kg.

 

 

Insuflação Traqueal de Gás

 

Outra manobra acessória usada na ventilação protectora pulmonar e utilizada para ultrapassar a hipercapnia permissiva é a Insuflação Traqueal de Gás (TGI). Trata-se de uma manobra simples em que através de uma sonda de oxigénio, introduzida no tubo endotraqueal e com a extremidade distal posicionada a nível da carina, se introduz O2 com um débito de aproximadamente 2 l/min. Assim consegue-se uma “lavagem” do espaço morto proximal e maior eliminação e redução do CO2.

Num estudo realizado em 1996 por Barnett et al (10) a utilização da TGI em doentes com ARDS diminuiu os valores de PaCO2 e de pH de forma significativa.

 

 

Posicionamento do doente com ARDS

 

Outra área de investigação relaciona-se com o impacto do posicionamento do doente ventilado no ARDS. Mudanças de posição para decúbito ventral e/ou decúbito lateral extremo melhoraram a perfusão para as áreas pulmonares ventiladas, traduzindo-se em melhoria franca da oxigenação. Além estas mudanças de posição melhoram a mecânica e a drenagem pulmonar. O trabalho de Marini et al (11) de 1996 calcula que entre 50 a 75% dos doentes com ARDS melhoram a oxigenação com a mudança de posição.

Vários factores explicam a subida da PaO2 com o decúbito ventral nestes doentes, nomeadamente o recrutamento de áreas pulmonares paravertebrais, aumento do volume pulmonar e uma distribuição mais homogénea da ventilação favorecendo a redistribuição da perfusão pulmonar e diminuindo o desequilibro ventilação/perfusão.

 

 

Novas direcções

 

Outras estratégias não farmacológicas foram entretanto sendo utilizadas na abordagem farmacológica do doente traumatizado com ALI/ARDS, nomeadamente a Ventilação Liquida (VL) utilizando o preenchimento total ou parcial da via aérea com perfluorocarbono e a Circulação Extracorporal para Oxigenação por Membrana (ECMO) e para Remoção de CO2 (ECCO2). Em relação VL o estudo realizado por Bartlett et al (12) apesar de mostrar melhoria dos parâmetros de dinâmica pulmonar e dos índices de oxigenação, não diminuiu o tempo de ventilação nem a mortalidade global do ARDS. Em relação ao ECMO e ECCO2 a experiência limitada existente revela uma taxa de complicações significativa dado a caracter invasivo da técnica.

 

Apresenta-se na tabela seguinte as estratégias de tratamento e suporte fundamentadas pelos conhecimentos clínicos actuais, aquelas que não se justificam perante os conhecimentos actuais e por fim as que aguardam fundamentação por estudos e ensaios clínicos

 

 

 

 

Intervenção não farmacológicas no ARDS

Fundamentadas

Não Fundamentadas

Aguardam estudos RC

Hipercapnia permissiva

ECMO e ECCO2

“Open Lung Approach”

“Pressure Targeted Ventilation”

 

Ventilação Liquida

Relação I:E Invertida

 

Insuflação Traqueal

 

 

“Prone Positioning”

 

 

As boas notícias

Ao continuar-mos a viver numa sociedade cada vez mais dependente de tecnologia sofisticada mas também agressora do seu utilizador, é altamente improvável que o numero de acidentes e a sua gravidade venham a diminuir.

 

Nos últimos 10 anos ao contrario do sinistralidade geral, a mortalidade do ARDS tem vindo a melhorar. Tradicionalmente a mortalidade deste síndroma situava-se acima dos 50% e não se tinha modificado desde 1967.

No entanto um estudo recente de Milberg et al. (13) avalia a mortalidade anual do ARDS entre 1983 e 1993 e conclui que se verificou um decréscimo significativo; para a globalidade da população com ARDS este autor verificou uma mortalidade de 53 a 68% entre 1983 e 1987 contra cerca de 36% em 1993. As razões para esta mudança não são claras e certamente serão de caracter multifactorial, incluindo certamente o melhor suporte vital e melhoria do suporte ventilatório.

Estes dados devem ser encarados com optimismo e fazer-nos avançar no sentido do aprofundamento dos conhecimentos da patofisiologia do síndroma assim como no melhor controle da disfunção inflamatória a ele associada.

 

 

 

 

 

 

 

Almada, Novembro de 2000

 

 

Referencias:

1.     Bernard GR, Artigas A, Brigham KL, et al. Report of the American-European consensus conference on ARDS: definitions, mechanisms, relevant outcomes and clinical trial coordination. The Consensus Committee. Intensive Care Med. 1994;20:225–232.

2.     Hudson LD, Milberg JA, Anardi D, Maunder RJ. Clinical risks for development of the acute respiratory distress syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 1995;151(2 Pt 1):293–301.

3.     Gattinoni L, Pelosi P, Suter PM, et al. Acute respiratory distress syndrome caused by pulmonary and extrapulmonary disease: different syndromes? Am J Respir Crit Care Med. 1998; 158: 3-11

4.     Hickling KG, Walsh J, Henderson S, Jackson R. Low mortality rate in adult respiratory distress syndrome using low-volume, pressure-limited ventilation with permissive hypercapnia: a prospective study. Crit Care Med. 1994; 22:1568 –1578.

5.     Gentilello LM, Anardi D, Mock C, Arreola R-C, Maier Permissive hypercapnia in trauma patients. J Trauma. 1995; 39:846 –852.

6.     Amato MB, Barbas CS, Medeiros DM, et al. Beneficial effects of the “open lung approach” with low distending pressures in acute respiratory distress syndrome: a prospective randomized study on mechanical ventilation. Am J Respir Crit Care Med. 1995;152(6 Pt 1):1835–1846.

7.     Amato MB, Barbas CSV, Medeiros DM, et al. Effect of a protective-ventilation strategy on mortality in the acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 1998;338: 347-354

8.     Brochard L, Roudat-Thoraval F, Roupie E, et al. Tidal volume reduction for prevention of ventilator-induced lung injury in Acure Respiratory Distress Syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 1998;158:1831–1838.

9.     Stewart TE, Meade MO, Cook DJ, et al. Evaluation of a ventilation strategy to prevent barotrauma in patients at high risk for Acute Respiratory Distress Syndrome. N Engl J Med. 1998;338:355–361.

10.  Barnett CC, Moore FA, Moore EE, et al. Tracheal gas insufflation is a useful adjunct in permissive hypercapnic management of acute respiratory distress syndrome. Am J Surg. 1996;172:518 –521.

11. Marini JJ. Evolving concepts in the ventilatory management of acute respiratory distress syndrome. Clin Chest Med. 1996;17:555–575.

12.  Bartlett RH, Hirschl RB. Liquid ventilation in ARDS. Acta Anaesthesiol Scand Suppl. 1997;111:68 –69.

13.  Milberg JA, Davis DR, Steinberg KP, Hudson LD. Improved survival of patients with acute respiratory distresssyndrome (ARDS): 1983–1993. JAMA. 1995;273:306 –309.