Nutrição Entérica

 

 

 

* Antero do Vale Fernandes

* Sub-Especialista em Medicina Intensiva

* Assistente Hospitalar de Medicina Interna / Cuidados Intensivos

* Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital Garcia de Orta

  Almada - PORTUGAL

 

 

 

 

  1. Introdução
  2. Métodos de administração da nutrição entérica
  3. Classificação das dietas entéricas
  4. Selecção das dietas entéricas
  5. Técnicas de administração
  6. Vias de administração
  7. Complicações
  8. Referências Bibliográficas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

 

A experiência clínica acumulada nas últimas duas décadas permite afirmar que a nutrição entérica é um método eficaz de assegurar um suporte nutricional adequado a doentes críticos com função gastrointestinal normal ou quase normal.

 

O método mais prático e comum consiste em infundir uma dieta entérica de fórmula, com ou sem ajuda de uma bomba peristáltica, através de uma sonda de alimentação nasal (salvo contra-indicação) de calibre fino colocada no estômago ou no intestino delgado.

 

Tal como em outras formas de suporte nutricional, o objectivo mais importante é a manutenção do estado nutricional enquanto se trata a doença de base. Algumas vezes perante um défice nutricional prévio, um outro objectivo não menos importante é a melhoria do estado nutricional.

 

Na actualidade, sabe-se que os traumatizados e os doentes em estado séptico hipermetabólico não são capazes de superar as respostas neuroendócrinas primárias à lesão, mesmo com uma ingesta nutricional adequada, pelo que, nas primeiras fases estes doentes apresentam um balanço nutricional negativo. Contudo, em outros casos as razões de  um balanço nutricional negativo se devem em geral à uma ingestão inadequada.

 

É ponto assente que a composição da dieta pode afectar profundamente o crescimento, a função celular, a resposta aos fármacos e outros importantes aspectos biológicos. Nas duas últimas décadas verificou-se um enorme progresso na compreensão da influência dos nutrientes sobre mecanismos imunes específicos e não específicos. Um dos pilares da investigação em nutrição nos últimos anos,  foi e é a imunosupressão associada aos doentes e traumatizados com elevado grau de stress metabólico.

 

Outro aspecto importante do suporte nutricional actual no doente crítico é a utilização precoce da nutrição entérica na preservação da “função barreira intestinal”, pois a sua atrofia associa-se à translocação bacteriana e de endotoxinas, as quais podem actuar como factores desencadeantes da resposta hipermetabólica e induzir a fenómenos sépticos capazes de provocar falência multiorgânica.

 

Constituem objectivos actuais do suporte nutricional no doente crítico os seguintes:

 

- aumento da síntese proteica

- diminuição da degradação proteica

- manutenção da integridade da barreira intestinal (evitar a translocação bacteriana)

- melhoria da resposta imune

 

Nesta base, foram desenvolvidos na actualidade vários preparados comerciais com fórmulas entéricas especialmente desenhadas para doentes com alto grau de stress metabólico, integrando componentes como: a arginina, o ácido ribonucleico e os ácidos gordos polinsaturados, que  assumem particular importância na modulação de uma resposta imunonutricional que se pretende adequada.

 

A  eficácia do suporte nutricional por via entérica pode ser influenciada por vários factores, de entre os quais:

-         formulação adequada da dieta

-         configuração óptima das sondas de alimentação entérica

-         compreensão da patogenia dos efeitos secundários

 

 

Métodos de Administração de Nutrição Entérica

 

A administração directa de nutrientes pelo tracto gastrointestinal pode ser feitas de distintas formas:

 

Administração oral

 

 - alimentos normais

 - alimentos líquidos

 - suplementos líquidos

 

Alimentação por sonda nasal

 

 - nasogástrica

 - nasoduodenal

 - nasojejunal

 

Alimentação por enterostomia

 

-         faringostomia cervical

-         esofagostomia cervical

-         gastrostomia

           Stamm

           Witzel

           Janeway

           Técnica de catéter de gastrostomia-jejunostomia de Rombeau

           Gastrostomia endoscópica percutânea

 

 

Jejunostomia

 

-         Witzel

-         Roux em Y

-         Jejunostomia com catéter de agulha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dietas entéricas

 
Classificação das dietas entéricas

 

 

   Tipo                                                                                                       Comentário

 

Polimérica                                                                    Fonte de N: proteínas. Uso em doentes com

                                                                         função gastrointestinal normal ou quase    

  normal.

 

 

Pré-digerida, quimicamente                                        Fonte de N:  aminoácidos livres ou oligopép-

definida, elementar                                                         tidos. Pequena quantidade de triglicéridos

                                                                  de cadeia larga. Uso em doentes com

                                                                         transtornos gastrointestinais graves.

 

 

Dietas específicas

 

Encefalopatia Portosistémica                                     Fonte de N: aminoácidos livres. Conteúdo e-

                                                               levado de aminoácidos de cadeia ramificada

                                                               e reduzido de aminoácidos aromáticos. Indi-

  cação discutível                   

  

 

 Insuficiência respiratória e                                                   Fonte de N: proteínas. Diminuição dos

cardíaca                                                                           hidratos de carbono com fonte energética

                                                               

 

 

 Estados hipermetabólicos                                       Enriquecida com aminoácidos de cadeia rami-

                                                                 ficada. Indicação discutível

 

 

 

Dados controlados actuais demonstram maior incidência de infecção e de diarreia com a utilização de dietas entéricas formuladas e preparadas nos departamentos de dietética hospitalar (dietas domésticas). Por tal facto, o consenso actual recomenda o uso rotineiro de preparados comerciais.

 

Selecção de dietas

 

Doentes com função gastrointestinal normal

 

Ensaios clínicos controlados mostraram não parecer haver vantagens em alimentar os doentes com função gastrointestinal normal ou quase normal com uma dieta previamente digerida ou quimicamente definida.  A formulação de dietas poliméricas deve basear-se no conhecimento da fisiologia da absorção dos nutrientes e das suas diferentes necessidades.

 

A grande maioria dos intensivistas utilizou durante muito tempo de forma rotineira dietas poliméricas com uma densidade energética de 1 Kcal/ml nos doentes não hipermetabólicos com função gastrointestinal normal ou quase normal. Contudo, a experiência clínica acumulada demonstrou ser particularmente difícil administrar mais de 2-2,5 L diários de uma dieta entérica a um doente convencional. Estudos recentes mostraram balanços nitrogenados significativamente melhores  com a utilização de dietas ricas em energia e nitrogénio (1,5 Kcal/ml e 9,4 g N/L, respectivamente) comparativamente às dietas poliméricas unicamente ricas em energia (1,5 Kcal/ml e 7,8 g N/L) ou standard (1 Kcal/ml, 6,3 g N/L).  Por este facto, a tendência actual parece ser  a utilização de dietas com alta densidade energética e de nitrogénio (1,5 Kcal/ml, 9,4 g N/L) por rotina, sempre que sejam bem toleradas e se associem  a um melhor balanço nitrogenado. Nos doentes em estado catabólico grave com função gastrointestinal normal, é aconselhável o emprego de dietas dietas poliméricas com uma densidade energética de 2 Kcal/ml e um conteúdo de nitrogénio até 13 g N/L.  Convém no entanto, lembrarmo-nos do risco real de infusão excessiva de carbohidratos nestes doentes, alguns dos quais têm resistência à insulina. Além disso a sobrecarga excessiva de carbohidratos pode alterar a função respiratória.

 

 

Doentes com transtornos da função gastrointestinal

 

Nas situações clínicas em que a taxa de absorção de nutrientes está limitada por transtornos da hidrólise luminal, redução da taxa de absorção da mucosa ou da sua capacidade hidrolítica, a utilização de dietas entéricas com nutrientes pré-digeridos determina uma repleção mais eficaz que as dietas poliméricas. Em termos práticos estas dietas pré-digeridas, também denominadas quimicamente definidas ou elementares, empregam-se em doentes com insuficiência pancreática exócrina grave ou síndroma de intestino curto. Nos doentes com transtornos graves da assimilação de nutrientes existem razões para pensar que os nutrientes devem apresentar-se à mucosa numa forma que permita a sua absorção máxima. Por vezes é muito difícil valorizar o emprego de um dieta polimérica ou elementar, pois a capacidade de assimilação de nutrientes do tracto gastrointestinal pode estar infravalorizada.

 

Doentes com elevado stress metabólico

 

 

Foi grande o interesse na investigação de um eventual papel anti-catabólico dos aminoácidos de cadeia ramificada, particularmente da leucina,  no suporte nutricional dos doentes com elevado stress metabólico. Contudo, até este momento não se postula nenhum papel especial dos mesmos.

 

 

Técnicas de Administração

 

 

As técnicas de administração  utilizadas durante a nutrição entérica são importantes. Provavelmente a eficácia da nutrição entérica tenha aumentado significativamente com a modificação e melhoria das mesmas e em menor grau com a manipulação das fórmulas dietéticas.

 

Desenho da sonda de alimentação

 

O emprego de sondas de tipo Ryle de calibre largo para nutrição nasogástrica tende a produzir irritação e inflamação do esófago com hemorragia e formação de estenoses posteriores, devido ao seu tamanho e rigidez. Estes efeitos secundários não aparecem com as novas sondas mais moles e estreitas.

A nova geração de sondas de poliuretano permite um aumento importante da área de fluxo dos tubos e está associada a um melhor rendimento, conforme comprovado em ensaios clínicos controlados.

 

Vias de administração

 

Alimentação por sonda nasogástrica ou nasoentérica

 

O principal inconveniente da alimentação nasoduodenal ou nasojejunal  é a anulação da função piloro. Este tem essencialmente uma função de esvaziamento gástrico regulada pela entrada de conteúdo gástrico no duodeno (freio duodenal). Esta importante função é com frequência omitida em nutrição entérica, facto que na maioria das vezes se associa a dor abdominal tipo cólica, flatulência e diarreia, devido à rápida secreção de líquidos e electrólitos em resposta a elevada carga osmótica de nutrientes que entra no intestino delgado. A utilização  preferencial da via nasogástrica reduz a necessidade de enlentecer o ritmo de infusão com o objectivo de evitar o aparecimento de efeitos colaterais gastrointestinais.

 

 

Vias de nutrição entérica prolongadas

 

Em algumas situações os doentes requerem uma nutrição entérica prolongada, facto que na maioria das vezes se antevê desde o início. Nestes casos, é viável considerar a possibilidade de criação cirúrgica de uma via de administração permanente, de entre as quais as técnicas endoscópicas percutâneas assumem particular relevância na actualidade.

 

Pautas de administração iniciais

 

Os efeitos secundários da nutrição entérica compreendem náuseas, flatulência e dor abdominal. A diarreia, definida como diminuição da consistência das fezes e  aumento da frequência de dejecções, observa-se em cerca de ¼ dos doentes submetidos à nutrição entérica.

Desde há muito que se sabe que estes efeitos secundários, em especial a diarreia, se podem reduzir introduzindo gradualmente a dieta até alcançar a concentração total durante um período de 3 a 4 dias.

Trabalhos recentes, evidenciaram contudo, que a prescrição desde o inicio de uma dieta polimérica entérica completa pode se justificar plenamente em doentes com função gastrointestinal normal, desde que se infunda de forma contínua ao longo de 24 horas por via nasogástrica.  Outras investigações comprovaram no entanto, que a infusão contínua durante 24 horas de uma  dieta elementar por via nasogástrica, é também um método seguro  no  manejo de doentes com exacerbações agudas de doença inflamatória intestinal.

 

 

Complicações

 

Provavelmente a diarreia seja a mais comum das complicações da nutrição entérica, e como mencionando anteriormente está presente em ¼ dos doentes. Na sua patogenia estão implicados uma série de factores, como a utilização de dietas infectadas, a intolerância a lactose, a intolerância  a cargas osmóticas elevadas, a libertação inadequada de hormonas polipeptídicas gastrointestinais, o tratamento antibiótico concomitante e os laxantes. É igualmente frequente quando se infundem dietas hiperosmolares de forma rápida no duodeno ou jejuno, em resultado  da rápida secreção de líquidos e electrólitos que ocorre no intuito de manter o conteúdo intestinal alto numa relação isoosmótica com o plasma.  A diarreia geralmente não surge se se infundir uma dieta polimérica (2-2,5L) com uma osmolaridade até 450 mOsm/Kg de forma contínua durante as 24 h no estômago. 

 

 

Quadro resumo das complicações da nutrição entérica

 

           Tipo                                              Comentários                                          Solução

 

 

Relacionadas com sonda                            

de alimentação:

 

Inflamação, hemorragia ou estenose               rara com as novas sondas                          profilaxia com inibidores H2     

esofágica                                                        

                                                                     

Deslocamento da sonda                                   geralmente em inconscientes                         comprovação radiológica

  

Perfuração esofágica, nasofaríngea ou             rara                                                                 tratamento conservador?

gástrica

Náuseas                                                            5-15%                                                              desaparição expontânea

Flatulência abdominal                                                                                                                          < ritmo de infusão

 

Dor abdominal                                                   sobrecarga osmótica

Diarreia                                                              25%                                                                        imodium ou codeína

 

Bioquímicas

 

hiperglicémia                                                resistência a insulina                                                                     insulina

Hipocaliemia                                                 perdas de nitrogénio/fase anabólica                                      suplementos

Hipofosfatémia                                              perdas de nitrogénio                                                              suplementos

Défices vitamínicos, minerais e                     rara, vigilância clínica e bioquímica                                       suplementos

ácidos gordos essenciais

Anomalias das provas de função                   multifactorial/doença de base                                               s/ significado

hepática

 

 

 Referências Bibliográficas

 

  1. Rombeau JL, Barot LR, Low DW, Twomey PL. Feeding by tube enterostomy. In: Rombeau JL, Caldwel MD, ed. Enteral and tube feeding. Philadelphia: WB Saunders, 1984; 275
  2. Silk DBA. Diet formulation and choice of enteral diet. Gut 1986; 27:Suppl.1:40-46
  3. Zaloga GP: Nutrition in Critical Care 1994
  4. Van Buren, CT. Nutrition. Vol. 6(1): 105-106 (1990)
  5. Alexander, JW., Peck, MD. Future prospects for adjunctive therapy: Pharmacologic and nutritional approaches to immune system modulation. Critical Care Medicine. 18: S 159 (1990)

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   A nutrição encontra-se no umbral de uma nova era, uma era em que ninguém duvida do papel fundamental da nutrição como parte integrante da terapêutica do doente crítico. Por isso, um dos maiores objectivos actuais no domínio do suporte nutricional, aponta para a consecução por meio da dieta, de uma óptima actividade do sistema imunitário

 

Charles van Buren