Nutrição Entérica
* Antero do Vale Fernandes
* Sub-Especialista em Medicina Intensiva
* Assistente Hospitalar de Medicina Interna / Cuidados Intensivos
* Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital Garcia de Orta
Almada - PORTUGAL
Introdução
A experiência
clínica acumulada nas últimas duas décadas permite afirmar que a nutrição entérica
é um método eficaz de assegurar um suporte nutricional adequado a doentes
críticos com função gastrointestinal normal ou quase normal.
O método mais
prático e comum consiste em infundir uma dieta entérica de fórmula, com ou sem
ajuda de uma bomba peristáltica, através de uma sonda de alimentação nasal
(salvo contra-indicação) de calibre fino colocada no estômago ou no intestino
delgado.
Tal como em outras
formas de suporte nutricional, o objectivo mais importante é a manutenção do
estado nutricional enquanto se trata a doença de base. Algumas vezes perante um
défice nutricional prévio, um outro objectivo não menos importante é a melhoria
do estado nutricional.
Na actualidade,
sabe-se que os traumatizados e os doentes em estado séptico hipermetabólico não
são capazes de superar as respostas neuroendócrinas primárias à lesão, mesmo
com uma ingesta nutricional adequada, pelo que, nas primeiras fases estes
doentes apresentam um balanço nutricional negativo. Contudo, em outros casos as
razões de um balanço nutricional
negativo se devem em geral à uma ingestão inadequada.
É ponto assente
que a composição da dieta pode afectar profundamente o crescimento, a função
celular, a resposta aos fármacos e outros importantes aspectos biológicos. Nas duas
últimas décadas verificou-se um enorme progresso na compreensão da influência
dos nutrientes sobre mecanismos imunes específicos e não específicos. Um dos
pilares da investigação em nutrição nos últimos anos, foi e é a imunosupressão associada aos doentes e traumatizados
com elevado grau de stress metabólico.
Outro aspecto
importante do suporte nutricional actual no doente crítico é a utilização
precoce da nutrição entérica na preservação da “função barreira intestinal”,
pois a sua atrofia associa-se à translocação bacteriana e de endotoxinas, as
quais podem actuar como factores desencadeantes da resposta hipermetabólica e
induzir a fenómenos sépticos capazes de provocar falência multiorgânica.
Constituem
objectivos actuais do suporte nutricional no doente crítico os seguintes:
-
aumento da síntese proteica
-
diminuição da degradação proteica
-
manutenção da integridade da barreira intestinal (evitar a translocação
bacteriana)
-
melhoria da resposta imune
Nesta base, foram
desenvolvidos na actualidade vários preparados comerciais com fórmulas
entéricas especialmente desenhadas para doentes com alto grau de stress
metabólico, integrando componentes como: a arginina, o ácido ribonucleico e os
ácidos gordos polinsaturados, que
assumem particular importância na modulação de uma resposta
imunonutricional que se pretende adequada.
A eficácia do suporte nutricional por via
entérica pode ser influenciada por vários factores, de entre os quais:
-
formulação adequada da dieta
-
configuração óptima das sondas de
alimentação entérica
-
compreensão da patogenia dos efeitos
secundários
Métodos de Administração de
Nutrição Entérica
A administração directa de nutrientes pelo tracto
gastrointestinal pode ser feitas de distintas formas:
Administração oral
- alimentos normais
- alimentos líquidos
- suplementos líquidos
Alimentação por sonda nasal
-
nasogástrica
-
nasoduodenal
-
nasojejunal
Alimentação por enterostomia
-
faringostomia
cervical
-
esofagostomia
cervical
-
gastrostomia
Stamm
Witzel
Janeway
Técnica de catéter de gastrostomia-jejunostomia de
Rombeau
Gastrostomia endoscópica percutânea
-
Witzel
-
Roux em Y
-
Jejunostomia com catéter de agulha
Tipo
Comentário
Polimérica Fonte de N: proteínas. Uso em doentes com
função gastrointestinal normal ou quase
Pré-digerida, quimicamente Fonte de N:
aminoácidos livres ou oligopép-
definida, elementar tidos.
Pequena quantidade de triglicéridos
de cadeia larga. Uso em doentes com
transtornos
gastrointestinais graves.
Encefalopatia
Portosistémica Fonte de N: aminoácidos livres. Conteúdo e-
levado de
aminoácidos de cadeia ramificada
e
reduzido de aminoácidos aromáticos. Indi-
cação discutível
Insuficiência respiratória e Fonte de N: proteínas. Diminuição dos
cardíaca hidratos
de carbono com fonte energética
Estados hipermetabólicos Enriquecida com aminoácidos de cadeia rami-
ficada. Indicação discutível
Dados controlados
actuais demonstram maior incidência de infecção e de diarreia com a utilização
de dietas entéricas formuladas e preparadas nos departamentos de dietética
hospitalar (dietas domésticas). Por tal facto, o consenso actual
recomenda o uso rotineiro de preparados comerciais.
Selecção de
dietas
Doentes
com função gastrointestinal normal
Ensaios
clínicos controlados mostraram não parecer haver vantagens em alimentar os
doentes com função gastrointestinal normal ou quase normal com uma dieta previamente
digerida ou quimicamente definida. A
formulação de dietas poliméricas deve basear-se no conhecimento da fisiologia
da absorção dos nutrientes e das suas diferentes necessidades.
A grande maioria
dos intensivistas utilizou durante muito tempo de forma rotineira dietas
poliméricas com uma densidade energética de 1 Kcal/ml nos doentes não
hipermetabólicos com função gastrointestinal normal ou quase normal. Contudo, a
experiência clínica acumulada demonstrou ser particularmente difícil administrar
mais de 2-2,5 L diários de uma dieta entérica a um doente convencional.
Estudos recentes mostraram balanços nitrogenados significativamente
melhores com a utilização de dietas
ricas em energia e nitrogénio (1,5 Kcal/ml e 9,4 g N/L, respectivamente)
comparativamente às dietas poliméricas unicamente ricas em energia (1,5 Kcal/ml
e 7,8 g N/L) ou standard (1 Kcal/ml, 6,3 g N/L). Por este facto, a tendência actual parece
ser a utilização de dietas com alta
densidade energética e de nitrogénio (1,5 Kcal/ml, 9,4 g N/L) por
rotina, sempre que sejam bem toleradas e se associem a um melhor balanço nitrogenado. Nos doentes em estado catabólico
grave com função gastrointestinal normal, é aconselhável o emprego de dietas
dietas poliméricas com uma densidade energética de 2 Kcal/ml e um
conteúdo de nitrogénio até 13 g N/L.
Convém no entanto, lembrarmo-nos do risco real de infusão excessiva de
carbohidratos nestes doentes, alguns dos quais têm resistência à insulina. Além
disso a sobrecarga excessiva de carbohidratos pode alterar a função
respiratória.
Doentes com transtornos da função gastrointestinal
Nas situações
clínicas em que a taxa de absorção de nutrientes está limitada por transtornos da
hidrólise luminal, redução da taxa de absorção da mucosa ou da sua capacidade
hidrolítica, a utilização de dietas entéricas com nutrientes pré-digeridos
determina uma repleção mais eficaz que as dietas poliméricas. Em termos
práticos estas dietas pré-digeridas, também denominadas quimicamente definidas
ou elementares, empregam-se em doentes com insuficiência pancreática exócrina
grave ou síndroma de intestino curto. Nos doentes com transtornos graves da
assimilação de nutrientes existem razões para pensar que os nutrientes devem
apresentar-se à mucosa numa forma que permita a sua absorção máxima. Por vezes
é muito difícil valorizar o emprego de um dieta polimérica ou elementar, pois a
capacidade de assimilação de nutrientes do tracto gastrointestinal pode estar
infravalorizada.
Doentes
com elevado stress metabólico
Foi grande o
interesse na investigação de um eventual papel anti-catabólico dos aminoácidos
de cadeia ramificada, particularmente da leucina, no suporte nutricional dos doentes com elevado stress metabólico.
Contudo, até este momento não se postula nenhum papel especial dos mesmos.
Técnicas de Administração
As técnicas de
administração utilizadas durante a
nutrição entérica são importantes. Provavelmente a eficácia da nutrição
entérica tenha aumentado significativamente com a modificação e melhoria das
mesmas e em menor grau com a manipulação das fórmulas dietéticas.
Desenho
da sonda de alimentação
O emprego
de sondas de tipo Ryle de calibre largo para nutrição nasogástrica tende a produzir
irritação e inflamação do esófago com hemorragia e formação de estenoses
posteriores, devido ao seu tamanho e rigidez. Estes efeitos secundários não
aparecem com as novas sondas mais moles e estreitas.
A nova geração de
sondas de poliuretano permite um aumento importante da área de fluxo dos tubos
e está associada a um melhor rendimento, conforme comprovado em ensaios
clínicos controlados.
Vias de administração
Alimentação
por sonda nasogástrica ou nasoentérica
O principal
inconveniente da alimentação nasoduodenal ou nasojejunal é a anulação da função piloro. Este tem
essencialmente uma função de esvaziamento gástrico regulada pela entrada de
conteúdo gástrico no duodeno (freio duodenal). Esta importante função é com
frequência omitida em nutrição entérica, facto que na maioria das vezes se
associa a dor abdominal tipo cólica, flatulência e diarreia, devido à rápida secreção
de líquidos e electrólitos em resposta a elevada carga osmótica de nutrientes
que entra no intestino delgado. A utilização
preferencial da via nasogástrica reduz a necessidade de enlentecer o
ritmo de infusão com o objectivo de evitar o aparecimento de efeitos colaterais
gastrointestinais.
Vias de nutrição entérica
prolongadas
Em
algumas situações os doentes requerem uma nutrição entérica prolongada, facto
que na maioria das vezes se antevê desde o início. Nestes casos, é viável
considerar a possibilidade de criação cirúrgica de uma via de administração
permanente, de entre as quais as técnicas endoscópicas percutâneas assumem
particular relevância na actualidade.
Pautas de administração iniciais
Os
efeitos secundários da nutrição entérica compreendem náuseas, flatulência e dor
abdominal. A diarreia, definida como diminuição da consistência das fezes
e aumento da frequência de dejecções,
observa-se em cerca de ¼ dos doentes submetidos à nutrição entérica.
Desde há
muito que se sabe que estes efeitos secundários, em especial a diarreia, se
podem reduzir introduzindo gradualmente a dieta até alcançar a concentração
total durante um período de 3 a 4 dias.
Trabalhos
recentes, evidenciaram contudo, que a prescrição desde o inicio de uma dieta
polimérica entérica completa pode se justificar plenamente em doentes com
função gastrointestinal normal, desde que se infunda de forma contínua ao longo
de 24 horas por via nasogástrica.
Outras investigações comprovaram no entanto, que a infusão contínua
durante 24 horas de uma dieta elementar
por via nasogástrica, é também um método seguro no manejo de doentes com
exacerbações agudas de doença inflamatória intestinal.
Complicações
Provavelmente
a diarreia seja a mais comum das complicações da nutrição entérica, e como
mencionando anteriormente está presente em ¼ dos doentes. Na sua patogenia
estão implicados uma série de factores, como a utilização de dietas infectadas,
a intolerância a lactose, a intolerância
a cargas osmóticas elevadas, a libertação inadequada de hormonas polipeptídicas
gastrointestinais, o tratamento antibiótico concomitante e os laxantes. É
igualmente frequente quando se infundem dietas hiperosmolares de forma rápida
no duodeno ou jejuno, em resultado da
rápida secreção de líquidos e electrólitos que ocorre no intuito de manter o
conteúdo intestinal alto numa relação isoosmótica com o plasma. A diarreia geralmente não surge se se
infundir uma dieta polimérica (2-2,5L) com uma osmolaridade até 450 mOsm/Kg de
forma contínua durante as 24 h no estômago.
Quadro resumo das complicações da nutrição entérica
Tipo Comentários
Solução
de
alimentação:
Inflamação,
hemorragia ou estenose rara
com as novas sondas profilaxia com inibidores H2
esofágica
Deslocamento da sonda geralmente em inconscientes comprovação
radiológica
Perfuração esofágica, nasofaríngea ou rara
tratamento conservador?
gástrica
Náuseas 5-15%
desaparição expontânea
Flatulência abdominal
< ritmo de infusão
Dor abdominal sobrecarga
osmótica
Diarreia 25%
imodium ou codeína
hiperglicémia resistência a
insulina
insulina
Hipocaliemia perdas de nitrogénio/fase anabólica
suplementos
Hipofosfatémia perdas de
nitrogénio
suplementos
Défices vitamínicos, minerais e rara, vigilância clínica e bioquímica
suplementos
ácidos gordos essenciais
Anomalias das provas de função multifactorial/doença de base s/ significado
hepática
Referências
Bibliográficas
.
“ A nutrição encontra-se no umbral de uma nova era, uma era em que ninguém
duvida do papel fundamental da nutrição como
parte integrante da terapêutica do doente crítico.
Por isso, um dos maiores objectivos actuais no
domínio do suporte nutricional, aponta para a consecução
por meio da dieta,
de uma óptima actividade do sistema imunitário”
Charles van Buren